sábado, 25 de fevereiro de 2012

Gerações à rasca


Um Dia Isto Tinha Que Acontecer, por Mia Couto

Existe mais do que uma! Certamente!
Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida.
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O génio Zeca






A reedição de 11 discos de José Afonso e espectáculos musicais em várias cidades portuguesas e no estrangeiro contam-se entre as iniciativas a realizar, na quarta-feira, para assinalar os 25 anos da morte do cantor.
Lisboa, Grândola, Barreiro, Coimbra, Açores, Barcelona e Newark são alguns dos locais onde os 25 anos da morte de José Afonso são lembrados na quarta-feira, para manter «vivo o espírito do Zeca e a lição de dignidade» que transmitiu a todos, como disse à agência Lusa Francisco Fanhais, companheiro de cantigas e de estrada de José Afonso, no período antes do 25 de Abril de 1974 e actualmente dirigente da Associação José Afonso.
Considerado durante muito tempo um músico de intervenção, José Afonso é, para Francisco Fanhais e para o jornalista Viriato Teles, «muito mais do que um cantor ou um músico de intervenção».
Essa designação serve mesmo, para Francisco Fanhais, «para menosprezar toda a parte poética e musical que José Afonso revelou e é um álibi muito bom para que os divulgadores de música o possam banir com toda a tranquilidade».
«Cada uma das canções de José Afonso faz parte de um conjunto de grande valor musical e poético que, penso, está ainda por descobrir», disse Francisco Fanhais.
Também o jornalista Viriato Teles, autor do livro As voltas de um andarilho – Fragmentos da vida e obra de José Afonso, considera que José Afonso «está ao nível de um dos grandes criadores musicais do mundo».
«Ao contrário do que habitualmente fazemos, que é comprarmos os portugueses com artistas estrangeiros, eu acho que o Pete Seeger é o Zeca Afonso norte-americano», disse o jornalista, sublinhando que José Afonso «está ao nível de um Bob Dylan, John Lennon, Léo Ferré ou mesmo de um Jacques Brel».
Considerar a obra de José Afonso apenas do ponto de vista da cantiga de intervenção «é do mais redutor que existe, até porque mesmo nesse campo ele esteve sempre à frente do tempo dele», disse Viriato Teles à Lusa, acrescentando que a obra musical de José Afonso era «tão complexa do ponto de vista poético como musical».
«Talvez por não ter formação musical, a obra de José Afonso era bastante complexa, já que ela mudava de compasso a meio das cantigas e isso tornava tudo bastante difícil e especial», frisou.
Viriato Teles não hesita mesmo em afirmar que José Afonso era «um génio, tal como Carlos Paredes» e que, por isso mesmo, quando José Afonso morreu «Paco Ibañez disse que Zeca teve azar de ter nascido português».
«Se tivesse nascido nos Estados Unidos estaria ao nível desses grandes criadores mundiais», disse, na altura, Paco Ibañez, lembrou Viriato Teles.
O jornalista invoca mesmo o facto de a obra de José Afonso ser a obra de um cantor português «mais divulgada a nível mundial».
«Basta ver a quantidade de versões de canções do Zeca, e não apenas a de Grândola vila morena, que existem no estrangeiro», disse, exemplificando com os casos de Charlie Haden e Carla Bley, Nara Leão ou as de Pi de la Serra e Luis Pastor.
«Pi de La Serra e Luis Pastor consideram mesmo que José Afonso foi o pai da nova música espanhola», sublinhou.
«Se há de facto um músico português que se universalizou foi o Zeca, se calhar tanto ou mais do que Amália, embora esta tenha tido mais visibilidade», frisou Viriato Teles.
Viriato Teles e Francisco Fanhais concordam ainda num outro ponto: «Apesar de reconhecido, José Afonso não tem ainda hoje o estatuto que devia ter na música».
Para assinalar os 25 anos da morte de José Afonso, a Movieplay vai editar agora – com a etiqueta Art’Orfeumedia – versões remasterizadas, com notas adicionais aos originais, assinadas pelo jornalista Gonçalo Frota, os onze álbuns que José Afonso editou para a Orfeu, disse à Lusa fonte da editora.
Na primeira semana de Abril sairão Cantares do andarilho e Contos velhos, novos rumos, enquanto na primeira semana de Maio sairão Traz outro amigo também, Cantigas do Maio e Eu vou ser como a toupeira.
Em Outubro regressam Venham mais cinco, Coro dos tribunais e Com as minhas tamanquinhas e, em Abril de 2013, será a vez de Enquanto há força, Fura, fura e Fados de Coimbra.
Entre os espetáculos que, um pouco por todo o país, assinalam o quarto de século da morte de José Afonso, destaca-se o que decorre na quarta-feira na Academia de Santo Amaro, em Lisboa. Organizado pelo núcleo de Lisboa da Associação José Afonso, o reúne, entre outros, cantores como Zeca Medeiros, Francisco Naia e Francisco Fanhais ou o duo Couple Coffee, que recria temas de José Afonso.
Nascido a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro, José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987, em Setúbal, aos 57 anos, vítima de esclerose lateral amiotrófica.

José Afonso sempre


Era o terceiro dia de aulas do 2º R do Ciclo Preparatório em Outubro de 1969, na Escola das Areias em Setúbal e só nos faltava conhecer os professores de Religião-Moral e História.
O meu pai dizia-me que as Disciplinas de Português, História e Religião-Moral eram as traves mestras do ensino. Assim aguardava com expectativa as aulas da tarde, que começavam com Religião-Moral. O professor um padre recentemente chegado a Setúbal, não me tinha agradado. Não gostei do seu palavreado e tratou-nos como um bando de malfeitores e depravados. E a expectativa de Religião-Moral desvaneceu-se. Por vezes interrogava-me, porque raios escolheram este padre!? Admirava tantos padres, e à frente de todos o Padre Ezequiel Augusto Marcos, o Padre Francisco Vaz e o Santo e Sábio Padre Carolino Carvalho, de quem era acólito na Igreja dos Grilos. À pergunta de meu pai: – Como vão os estudos, quando chegava a Religião-Moral, acabava sempre por dizer: – Vai, mais ou menos. Temia dizer-lhe que não gostava do padre, e ser presenteado com alguma “galheta”.
No segundo tempo era História. Depois de alguma espera e com a turma em grande algazarra, eis que surge um homem em passo apressado, deixando a turma em silêncio. Depois de tirar a gabardine bastante sovada, sentou-se à secretária e de olhar vazio passava o livro de ponto, alternando com olhares pela janela. Enquanto ele estava em silêncio sepulcral, a sala de aula era invadida por um som babilónico. O professor indiferente, não se importava.
Eu, incomodado, olhava de revés o professor, e logo concluí, que aquele homem era o José Afonso. Era o cantor que ouvia na rádio com os meus irmãos mais velhos. Algumas das suas canções passavam no programa Órbitra do RCP muito em voga. Sabia que tinha sido expulso do Liceu de Setúbal, onde estudava a minha irmã mais velha, por causa da política. Que faria ali aquele homem a dar aulas a uma turma de miúdos do ciclo!?
Levantando-se da secretária, começou a falar em cima do estrado: – Eu sou o vosso professor de História. Estou aqui porque preciso de ganhar a vida e como os meus filhos não pôem ovos, preciso de dar estas aulas. Mas não vou dar esta História da treta, imposta por este regime tenebroso, que espera pela tal idade para vos obrigar a marchar para África. A História que vou ensinar é contada pelos Homens do Mar, sentida nos Lugares e vivida pelos Povos que fazem a História. O silêncio era total na turma.
Esta turma era problemática, com bastantes repetentes, e onde as idades variavam entre os 12, que era o meu caso, e os 17 anos. Também havia alunos subnutridos, oriundos dos bairros de lata. Calados, e olhando uns para os outros, logo compreendemos que aquele professor era diferente.
- Mas não pensem que vocês não vão ter que estudar. Isso vocês têm que fazer, estudar, para serem Homens Livres, e pensarem pela vossa cabeça e assim combaterem esta ditadura, para termos um novo País. Outra coisa: Vou ter que fazer pontos, porque tenho que dar notas. Por isso vão ter que estudar o vosso livro. Têm que estudar, mesmo que essa matéria seja uma falsidade. Se quiserem copiar é com vocês. Não vou andar armado em toupeira, é uma decisão vossa. No entanto acho que devem ser honestos, porque se não o forem, juntam-se ao bando de vigaristas e corruptos que governam este país. Temos que ser dignos connosco, para sermos dignos com os outros. Por isso, recomendo que não devem copiar. Há que criar princípios e valores. Não concordam? Bem, por hoje é tudo, podem sair.
Ao longo dos dois períodos que foi nosso professor, entrevistámos pescadores, visitámos ruínas romanas, folheámos enciclopédias cheias de gravuras inacessíveis aos pobres, eram aulas vivas de História. Foi das turmas com menor abstenção e o aproveitamento subiu substancialmente. Depois da Páscoa já não voltou, sem sabermos porquê. A professora substituta, admirada dizia que nunca tinha visto uma turma com tanto entusiasmo pela História.
Se este não fosse um País de labregos, com colossal desonestidade, que medram em asfixiante mediocridade de cariz inquisitorial, provavelmente o País respirava a Obra Humana, Intelectual, Musical e Poética de Zeca Afonso.