segunda-feira, 15 de outubro de 2012

"SER PROFESSOR É UM INFERNO"



"SER PROFESSOR É UM INFERNO" - Sérgio Niza

Por Célia Rosa Fotografia de Paulo Spranger/Global Imagens
Notícias Magazine – 15 de Outubro de 2012




Alunos sem esperança, professores ansiosos, ensino bafiento e uma escola que não serve os interesses das crianças e jovens nem os do país. Sérgio Niza dedicou a vida à educação e não se conforma com o estado a que a escola portuguesa chegou. Mas há soluções, diz ele.
Professores insatisfeitos, pais preocupados e alunos que acham as aulas uma maçada. O que é que se passa com a nossa escola?
_Esse é o retrato da escola portuguesa e da generalidade das escolas dos países ocidentais devido à forma de organização do trabalho. A estrutura de ensino simultâneo - todos a aprender a mesma coisa ao mesmo tempo - vem do século xvii e ainda perdura apesar de se saber desde os anos vinte do século xx que é um modelo esgotado. O professor dá uma lição, depois faz uma pergunta, escolhe um aluno para responder e avalia o trabalho substancial que é feito em casa. O principal problema da escola está neste modelo de não-comunicação em que o professor usa mais de três quartos do tempo da aula para falar sem que os alunos participem ou estejam envolvidos. Assim não há diálogo possível. Poderá algum jovem ou criança suportar isto?
Não é a melhor metodologia para aprender, certo?
_Hoje, graças à investigação, sabemos que se aprende dialogando, falando e escrevendo o conhecimento científico e cultural que se estuda na escola. Devemos contar com a inteligência, os saberes e a colaboração dos alunos e os currículos não devem ser um segredo, devem ser eles a geri-los em conjunto com os professores. Persistir neste modelo de não-comunicação equivale a continuar a encarcerar alunos e a impedir a sociedade e as pessoas de se aproximarem da escola.
A escola não está adaptada à sociedade do século xxi?
_Nenhuma outra organização humana resistiu a tanta história e a tanta mudança como a escola, que funciona do mesmo modo há séculos. Hoje temos mais consciência de que a escola, como instrumento ao serviço do desenvolvimento humano, da sociedade, da economia e da cultura, já não serve.
Portugal está ao mesmo nível dos países europeus ou pior?
_A nossa desgraça é que estamos sempre muito atrasados. Quando implementamos políticas que foram experimentadas noutros países, fazemo-lo fora do tempo. A escola portuguesa está esclerosada, está desfasada do tempo histórico. Não corresponde às vivências, necessidades e esperanças dos alunos e das pessoas em geral.
Em suma, qual é a sua maior preocupação com a escola portuguesa?
_Não temos uma escola democrática, os alunos não participam na organização das aprendizagens e no ensino. Quase quatro décadas depois do 25 de Abril, lamento que os governantes não tenham aprendido que a melhor maneira de competir é pela cooperação - os desportistas de equipa, por exemplo os futebolistas, sabem-no bem. Ao invés, nós pusemos os alunos a competir com os colegas e os professores uns com os outros, o que empobrece o trabalho realizado. Esta ideia de transformar a escola, que deve ser um centro vivo de cultura, numa empresa é uma ilusão perigosa. E o sistema de vigilância e punição que está a montar-se para alunos e professores vai tornar a escola ainda mais desumana do que já é.
A escola está a formatar crianças e jovens?
_Completamente. A escola não perde tempo a fazer aprender. Cada vez mais, o que se sugere aos professores é que debitem a matéria, que vigiem e que penalizem os alunos que não aprendem por si ou com as famílias procedendo à sua retenção ou sujeitando-os a fileiras secundárias de ensino precário, como acontece com a introdução recente do ensino vocacional, que poderá por lei vir a atingir alunos do primeiro e segundo ciclos, o que é desde já sentido por todos como uma nova via de castigo ou de discriminação.
Mas do professor o que se espera é que transforme alunos com dificuldades em alunos tão bem sucedidos como os outros...
_As famílias e a sociedade deviam pressionar os professores para que assim fosse. Mas as políticas atuais parecem preconizar que o modo tradicional de trabalhar é que é bom. E assim as crianças e jovens que têm dificuldades vão continuar a ser excluídos. Da escola e da sociedade. E, no entanto, a Direção-Geral da Educação acabou de fazer um estudo sobre os percursos curriculares alternativos e concluiu que a inserção dos alunos nessas turmas especiais não se traduz numa recuperação das aprendizagens e que são residuais os casos de reingresso no ensino regular. Ora, eu pergunto: se é assim, porque se continua a apostar no mesmo? Sabem o que vai acontecer a estes jovens? Vão perder-se em outros percursos igualmente alternativos e vão continuar a ser tratados como portugueses de segunda.
Porque é que os professores não mudam as práticas dentro da sala de aula?
_Os professores foram ensinados de determinada maneira e tendem a replicar o modelo que conhecem. Por outro lado, esta forma de estar na escola tornou-se tão natural que alguns professores até pensam que é a única. Mas não. Temos de ter consciência do que se passa na generalidade das escolas para perceber porque fracassámos e querer mudar. Porque há soluções.
Quais são?
_Temos de substituir as soluções únicas da velha escola tradicional, reforçada agora por soluções de empobrecimento cultural inspiradas na América dos anos de 1980, por uma gestão comparticipada dos programas, pela entreajuda entre alunos, pela individualização de contratos de aprendizagem e uma forte colaboração que forme para a cidadania democrática. Alguns professores já o fazem hoje e devem continuar até que respeitem os seus direitos profissionais.
Os bons professores estão acomodados?
_Chegámos a um ponto em que até os bons professores que se mantêm no ensino temem ficar desempregados e o país corre o risco de que se tornem uns cordeirinhos, que obedecem cegamente às manipulações da administração. Os professores estão muito ansiosos, já não querem gastar tempo a falar de estratégias de ensino que melhorem as aprendizagens porque também eles estão obcecados com a avaliação. A que têm de fazer constantemente aos alunos e a avaliação final de ciclo, externa às escolas. Além disso, eles também vão ser examinados através dos resultados dos alunos, por via da avaliação do desempenho. É um inferno ser professor neste contexto.
Discorda da avaliação do trabalho dos professores?
_Não, o trabalho dos professores é pago por todos nós e deve ser avaliado. Mas uma coisa é avaliar o conjunto do trabalho do professor, incluindo a sua atitude no seio de uma equipa pedagógica, outra coisa é avaliar o professor como se faz com qualquer outro funcionário público. É que a natureza do trabalho dos professores é muito particular por ser crucial para o desenvolvimento humano, a preservação e a renovação da herança cultural.
Ainda há pouco tempo foram publicadas as metas curriculares para o ensino básico. É caso para dizer que finalmente haverá objetivos de aprendizagem claros e autonomia para os professores?
_Nem pensar. As metas servem a atual espinha dorsal da escola, que passou a ser o seu controlo. Não têm nada de novo, apenas servem para examinar e vigiar. As metas desviam-se dos programas em vigor mas isso é indiferente para o ministério pois os professores sabem que para alcançar resultados têm de olhar para as metas tendo-as em conta como o novo currículo.
As novas metas não servem os interesses dos alunos nem dos professores?
_O discurso oficial é que sim, que servem. Mas não é verdade, não servem porque empobrecem ocurriculum, o trabalho intelectual dos professores e dos alunos. Estas metas não trazem uma vantagem cultural e de socialização acrescida às aprendizagens, à escola e à sociedade.
Que apreciação faz do trabalho do ministro Nuno Crato?
_Este ministro aparenta estar absolutamente convencido de que está a fazer o melhor, mas ele não é um homem da educação. Até presumo que tenha sido escolhido por ser um bom comunicador político - ele tinha uma receita conservadora de reforço do ensino tradicional, e conseguiu passá-la nos media - e é economista com especialização em estatística - o que é importante para fazer contas e tornar a educação mais barata. Infelizmente, o senhor ministro não tem uma cultura acrescentada sobre a escola nem um conhecimento, para além do senso comum, sobre educação.

Os Professores


Achei por muito tempo que ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância de ensinar. Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores proibidos. Tive uma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade.

A escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito de liberdade intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria do mundo em que o mundo se tem vindo a tornar.

Nunca tive exatamente de ensinar ninguém. Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os recebe.

Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesses crescido um palmo inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por merecer que alguém os discutisse comigo.

Houve um dia, numa aula de história do sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora, uma gorduchinha toda contente e que me deixava contente também, que eram os olhos que induziam a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou. Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me elogiou a resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha. Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente felizes.

Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração galopava como se tivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou potenciam é a mais preciosa dádiva possível.

Dá-me isto agora porque me ando a convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os dias.

Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto.

As escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se.


Autobiografia Imaginária | Valter Hugo Mãe | JL Jornal de Letras, Artes e Ideias | Ano XXII | Nº 1095 | 19 de Setembro de 2012 | Texto publicado neste blogue por cortesia do autor | Valter  Hugo Mãe no Facebook

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O HOLOCAUSTO PASSOU POR AQUI



O Holocausto passou por aqui




CRIANÇAS JUDIAS ACOLHIDAS EM PORTUGAL NOS ANOS DO TERCEIRO REICH CORTESIA DA COMUNIDADE ISRAELITA DE LISBOA
Portugueses no Holocausto, de Esther Mucznik, sonda a posição de Portugal na Segunda Guerra Mundial e a sua política em relação aos refugiados judaicos. Uma obra que toca numa falha da identidade europeia.
O título Portugueses no Holocausto poderá contradizer uma certa memória popular da nossa História. Portugal atravessou a Segunda Guerra Mundial protegido por uma neutralidade estrategicamente delineada por António de Oliveira Salazar. O país "salvou-se" da guerra, e Lisboa tornou-se um palco de passagem para quem fugia dela. Mas o tempo veio revelar outra verdade histórica, e a neutralidade portuguesa, como de outras nações, teve afinal graves custos humanos que redundaram na tragédia montada passo a passo pela Alemanha nazi: a Solução Final, plano de matança da população judaica europeia em campos de concentração.
Esther Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e estudiosa das questões judaicas, clarifica com este livro várias facetas da guerra: a realidade da Lisboa neutral, a política do país entre dois campos em confronto, e o destino dos judeus europeus que Portugal recebeu e dos que não quis acolher.
Ao Ípsilon, a autora explica as origens da sua própria chegada a Portugal: "A nossa comunidade é fundada por judeus sefarditas [oriundos da Península Ibérica], mas, na realidade, começam a chegar pessoas entre o final do século XIX e o início do século XX, como os meus pais, que fogem do anti-semitismo na Polónia, na Ucrânia ou na Rússia." Com a chegada de Hitler ao poder, na Alemanha, em 1933, a perseguição dos judeus europeus começa a ganhar contornos insustentáveis. "Os refugiados de Hitler começam a vir logo em 1933 e a Comunidade Israelita de Lisboa cria a COMASSIS, a comissão de assistência aos refugiados." Outras associações ajudam os que conseguem passar as várias fronteiras para chegar a Portugal, que entretanto abrevia os vistos de estadia de "emigrantes judeus" para 30 dias e apenas sob apresentação de um visto de entrada noutro país e do respectivo bilhete de embarque. Nos EUA, o Emergency Rescue Committee, fundado em Nova Iorque, tenta obter os documentos necessários para facilitar o exílio de uma certa elite (artistas como Marc Chagall, Max Ernst ou Béla Bartók passaram por Portugal em trânsito para a América), mas a maioria dos refugiados vê-se a braços com a angústia do mercado negro, da repatriação ou de uma possível invasão nazi à Península Ibérica.
"Com o início da guerra, os judeus vão para França com a esperança de que esta iria opor-se à ocupação alemã. Com a queda de França, é o descalabro", diz Mucznik. Os que chegam a Portugal "estavam angustiados, tinham medo de que a Península fosse ocupada." "Viviam com uma dor intensa, nomeadamente os judeus alemães, porque eram profundamente ligados à cultura alemã e tinham a sensação de deixar a Europa para sempre", continua.
Apesar das restrições, são criadas "zonas de residência de fixa" e de circulação limitada nos arredores de Lisboa e no centro do país, para acolher refugiados. "Muitos começam a vir pela mão de Aristides de Sousa Mendes, que passa vistos num número que nunca conheceremos exactamente. Alguns vistos estão registados no Consulado, outros distribuiu-os em papéis onde escrevia "visto" e punha um carimbo. Outras pessoas vêm clandestinamente, e, face a esta situação, é a própria polícia política que tem a ideia de as concentrar." No entanto, o espírito encontrado no seio da população portuguesa, segundo os sobreviventes, é de compaixão e ajuda. "Havia anti-semitas no Governo e na polícia política, mas a ideologia dominante do regime não era essencialmente anti-semita. Naquela época, era pior ser comunista do que ser judeu em Portugal", argumenta a autora. Contudo, a posição do cônsul português em Bordéus constituía uma desobediência frontal às ordens do regime. "Ninguém foi tão punido como Aristides de Sousa Mendes, que chega a Portugal e é um homem completamente só - isso é revoltante. Nem a Igreja Católica [fez algo] nem o campo anti-fascista, porque, para este, tratava-se de um homem do regime."
Os portugueses que Portugal não quis
Perante a ameaça nazi, os judeus europeus de origem portuguesa, descendentes de famílias sefarditas perseguidas pela Inquisição (criada, em Portugal, no século XVI), viram-se para o seu país de berço numa tentativa de salvarem a vida. Muitos deles têm nomes portugueses e celebram a sua vida religiosa ainda na língua portuguesa. "A comunidade de Amesterdão do século XVII é uma comunidade poderosíssima, não só em termos económicos mas também intelectuais e religiosos. Isso vai manter-se até à Segunda Guerra Mundial", explica a autora. É uma comunidade destinada à extinção: quase todos os quatro mil judeus de origem portuguesa em Amesterdão são assassinados. "Em Salónica, isso não existia, mas ficou a língua, o ladino". Também aí, a extinção. apenas cinco por cento da população judaica de Salónica escapa à deportação. Nos bastidores desse trágico desfecho esteve a passividade de Salazar.
É em 1942 que se iniciam as deportações em massa para os campos de concentração. O Terceiro Reich comunica então aos países neutrais a oportunidade de repatriarem os judeus que são seus cidadãos nacionais. Mas Salazar recusa estender a nacionalidade portuguesa aos judeus europeus de origem portuguesa mesmo perante esta janela de sobrevivência que então se abriu: "Antes de tomar uma decisão, Salazar pede ao cônsul para perguntar [o que fazer] aos alemães; estes respondem que se [os cidadãos em causa] não tiverem nacionalidade portuguesa não podem sair. Salazar acata sem fazer pressão nenhuma, nem para documentos transitórios como os que foram dados aos húngaros para ficarem sob protecção na embaixada", sublinha a autora, aludindo à acção do embaixador Sampaio Garrido, que aluga uma propriedade nos arredores de Budapeste para albergar refugiados sem conhecimento do regime, situação tolerada numa altura em que a guerra se aproxima do fim.
Como explicar a atitude de Salazar? "É uma estratégia política muito definida: a neutralidade a todo o custo, [para] enriquecer Portugal [mantendo a Alemanha e a Inglaterra como parceiros comerciais], e, ao mesmo tempo, salvar o regime. É por isso que [a atitude] muda quando a guerra está perdida [para os alemães], mas não radicalmente. Hitler morre e Salazar põe a bandeira a meia-haste, mas, ao mesmo tempo, vai à missa pela alma de Roosevelt." No fundo, considera, o ditador português "não queria desagradar aos alemães, pois receava que a Alemanha invadisse a Península Ibérica."
Mas essa neutralidade obstinada revela também sinais do imperturbável isolamento que caracterizaria a vida do regime mesmo nas décadas seguintes. "Salazar não podia fechar as portas completamente, mas tentou-o o mais possível para evitar o contágio dos costumes e das ideologias dos refugiados." Para Mucznik, "Salazar tinha uma mentalidade de guerra-fria avant la lettre: não queria uma derrota total da Alemanha porque partilhava com Hitler um inimigo principal, o bolchevismo." E, perante a tragédia que grassava na Europa, revelou um traço de carácter: "Uma total indiferença ao sofrimento dos judeus, o que não existia nos diplomatas que estavam no meio da catástrofe". Essa indiferença só se desfaz quando se avizinha a derrota alemã. Aí, "Salazar salvou pessoas que tinham a nacionalidade [portuguesa] do tempo da República e que a foram revalidando": cerca de 200 pessoas originalmente de Salónica que tinham estado em França entre 1943 e 1944.
Uma tragédia europeia
Mas a intransigência política de Salazar, apesar dos apelos dos diplomatas que o vão informado regularmente, não se encontra isolada no continente europeu. A Segunda Guerra Mundial terminou sem que fosse tomada uma decisão política ou militar relativa à destruição dos campos de morte montados pela Alemanha nazi. Tal como antes nenhum país europeu se mostrou disponível para abrir as suas fronteiras a um crescente número de refugiados judeus. "Em 1938, na Conferência de Evian, ninguém quis saber o que é que acontecia aos judeus alemães que estavam desesperados para sair," diz Mucznik. Para a autora, "Portugal não fica pior no retrato do que os outros países". Tal também se deve a outro factor essencial: o Holocausto desenvolveu-se progressivamente na Europa sem que o continente soubesse, até aos últimos instantes, o destino terrível que esperavam, de facto, milhões de pessoas. "Na altura, as pessoas não tinham a noção do que estava a acontecer", argumenta a autora. "Nunca mais me esqueço do que uma sobrevivente me disse: "Esperávamos o pior, mas não o impossível". É aquilo a que os historiadores chamam "a barreira da lógica" - uma barreira na nossa mente sobre aquilo que pode acontecer. Quanto mais se investiga sobre o Holocausto, menos se percebe."
Algo que choca em qualquer investigação sobre o Holocausto é a percepção que se ganha da progressiva e paciente máquina de exterminação montada pelo regime nazi: tudo começa com uma feroz propaganda anti-semita, evoluindo para a exclusão social, política e económica dentro das cidades (com a posterior construção de guetos), e, depois, para a deportação final com destino a um assassínio em massa nas câmaras de gás. "Os historiadores dividem-se entre aqueles que acham que a ideia do extermínio estava colocada desde o início e os que pensam que há uma causalidade terrível. Julgo que foi isso que aconteceu, e há toda uma experimentação [sobre esta teoria]", afirma Mucznik. "Mas o que é real é que o Holocausto aconteceu não apesar da cultura mas utilizando os meios dessa cultura de um ponto de vista tecnológico e científico." Ou seja, uma máquina de morte construída por uma das culturas mais fortes do Ocidente, alicerçada na estrutura e na linguagem camuflada de uma fortíssima burocracia (em nenhuns dos documentos oficiais nazis se vislumbra uma referência directa ao que aconteceu realmente).
Mas a eficiência da matança não se deve apenas à máquina nazi - esta encontrou a colaboração e a cumplicidade de várias nações europeias. "Há países onde o anti-semitismo era grande, como em França, onde o caso Dreyfus é um exemplo disso. Foi o único país com um projecto próprio feito pela polícia francesa." O novo presidente francês, François Hollande, assumiu as responsabilidades francesas no Holocausto a 22 de Julho deste ano, no 70.º aniversário da rusga do Vélodrome d"Hiver, onde 12.884 pessoas foram capturadas. "A Leste, a realidade é mais complicada porque existem duas ditaduras. A ditadura soviética é mais recente, longa e atroz do que o nazismo. A população global, e não apenas os judeus, sofreu mais com o comunismo."
Aprender com a História
A sensação de que a maior tragédia do século XX europeu passou ao lado do continente - e de que todas as nações europeias foram afinal tocadas por ela, incluindo Portugal - deixou feridas profundas que deram lugar a um silêncio. "Muitas pessoas não quiseram falar, mas falei com um caso raríssimo: Shlomo Venezia, um sobrevivente dos Sonderkommando [unidades de prisioneiros judeus, nos campos de concentração, que lidavam com os restos mortais das vítimas das câmaras de gás]. Guardou um silêncio de 40 anos em relação à sua família, disse-me que tinha de reconstruir a sua vida e que optou por não falar, mas tornava-se cada vez mais tarde." Para Esther Mucznik, "havia outra razão para o silêncio: ninguém queria ouvir": "Primo Levi, que escreveu logo Se Isto é um Homem, não foi publicado pela sua editora de esquerda durante anos [a publicação só teria lugar em 1957]. Raul Hilberg voltou à Alemanha para a libertação dos campos e resolveu fazer toda a sua pesquisa sobre isso. Mas apenas o fez numa editora pequena e passados vários anos [The Destruction of the European Jews, 1961]."
Mas se o tempo tarda em sarar as feridas, cuidar da memória de forma construtiva é uma necessidade imperiosa para defender uma identidade europeia em paz, sobretudo perante a ascensão persistente de ideias radicais em governos democráticos e partidos europeus. Segundo Mucznik, "as sociedades continuam à procura de bodes expiatórios e há também saudades do nacionalismo: a Hungria ou a Polónia são países que foram ocupados e desmembrados por vários outros, o seu nacionalismo é muito forte". E "o nacionalismo ferrenho de extrema-direita" hostiliza não apenas os judeus mas "tudo o que não é tipicamente" local. Uma atitude que constitui o primeiro passo do perigo universal da banalização. "Não reflectimos sobre isso nem tirámos as lições, e a prova é que as coisas vão-se repetindo pela indiferença das nações. A saturação [do estudo do Holocausto] é directamente proporcional à ignorância. O Holocausto é património da Europa e temos de conviver com isso, não é apenas um problema entre judeus e alemães. Devíamos tentar aprender com a História: é quase impossível, mas temos essa obrigação."
http://www.publico.pt/temas/jornal/o-holocausto-passou-por-aqui-24963161

sábado, 6 de outubro de 2012

Gondomar



Em tempos que já lá vão


Gondomar à beira rio
Era um vale encantado
Por homens e animais
Um tesouro considerado.

No rio pescavam sável
E ainda muita lampreia
A remar um barco hábil
Faziam ouro da areia.

Nos montes pastava o gado
Que de erva se alimentava
As peles e carnes tenras
A toda a gente animava.

Assim, esta terra linda
Pelos Romanos foi cobiçada
À procura do seu ouro
Tornaram-na esburacada.

Como tinham que comer
Ensinaram a cultivar o chão
Para moer o louro trigo
Inventaram mós de mão.

Mas também os Visigodos
Aqui vieram parar
E é do seu rei  Gundemaro
Que vem o nome Gondomar


Depois chegaram os Árabes
Ferozes e de armas nos dentes
Também queriam os tesouros
E matar a fome às suas gentes.

Então houve uma batalha
Tão sangrenta e desmedida
Que o rio límpido e belo
Ficou tinto e sem vida.

Conta-se que nessa batalha
Uma princesa cristã
Procurando o irmão ferido
Encontrou uma alma irmã.

Era um árabe que gemia
E dele se apaixonou
O padre que a seguia 
De Fernando o nomeou.

E então os namorados
Para viver o seu amor
Na serra se esconderam
Para à vida dar mais cor.

Ora, um dia, as saudades
De seu pai e seu irmão
Fizeram a princesa sair
Ao encontro de perdão.

Mas Fernando com ciúme
Só pensando em traição
Apunhalou o cunhado
Sem  na cegueira ter mão.

Esta longa e triste história
Esqueceu-a Gondomar
Reviveu-a , na memória
De uma cantiga a dançar.

Como a gente de Gondomar
Era trabalhadora e paciente
O rei D. Manuel deu-lhe
Uma Carta inteligente

De Foral assim chamada
Nela estavam traçados
Os direitos e os deveres
Que deviam ser respeitados.

E ai de quem não cumprisse
O que o rei ordenava
Era chamado à justiça
Prisão e multa apanhava.


Corajosos e aventureiros
Os  gondomarenses partiram
À procura de tesouros.
Muitas bandeiras serviram

E ainda, longe no tempo
Os Franceses nos invadiram
Queriam roubar riquezas
Os de cá os impediram.

Gondomar de novo em guerra
Por sangue irmão é tingido
D. Pedro luta pela liberdade
Contra D. Miguel temido.


A zanga foi tão grande
 E a batalha feroz
Que ainda falam dela
Nossos pais e avós


Mas o Povo de Gondomar
Com tão longa e rica história
Aprendeu a trabalhar o ouro
A agricultura ontem e agora.

Com  ricas árvores no mato
Fez também marcenaria
No rio Douro a pescar
Tirou quantos peixes queria.


E, agora, depois do 25 de Abril
Em que ganhou liberdade
Não quer saber mais de guerras

Só a paz na sua cidade.