quarta-feira, 29 de setembro de 2021

O Pato na Escola - ou a defesa da humanidade que nos liberta

 

O Pato na Escola - ou a defesa da humanidade que nos liberta

 

A escola é o lugar onde deveríamos aprender a ser nós próprios e a respeitar todos os outros. Estar na escola, viver a escola deverá ser o caminho para chegar a conhecer, a amar e a desenvolver a nossa pessoa e, ao mesmo tempo, a ter em conta que há outras que merecem o nosso respeito, a nossa ajuda e o nosso afecto.

Quando falo de diversidade, não me refiro só aos alunos. Também há diferenças que devemos respeitar nos professores e nas professoras.

Diz Steiner que a relação professor-aluno é "uma alegoria do amor desinteressado". Ir todos os dias à escola. A sentirmo-nos como somos ou a encaixarmos numa engrenagem de rotinas despersonalizadoras? A obedecer de forma aborrecida àquele que prescreve, nas palavras de Helmutt Becker, a "escola administrada" ou a recriar o conhecimento e a convivência? A que cada pessoa seja cada vez mais ela própria ou a metermo-nos num molde único?

Certo dia, os animais do bosque decidiram fazer algo para enfrentar os problemas do mundo novo e organizaram uma escola. Adoptaram um currículo de actividades que consistia em correr, trepar, nadar e voar e, para que fosse mais fácil ensiná-lo, todos os animais se matricularam em todas as disciplinas.

O pato era um aluno destacado na disciplina de natação. De facto, era melhor que o seu professor. Obteve um suficiente em voo, mas em corrida não passou do insuficiente. Como era de aprendizagem lenta em corrida, teve que ficar na escola depois do fim das aulas e que abandonar a natação para poder praticar a corrida. Estes exercícios continuaram até que os seus pés membranosos se desgas¬taram, e então passou a ser apenas um aluno médio em natação. Mas a mediania era aceitável na escola, de modo que ninguém se preocupou com o sucedido, excepto, como é natural, o pato.

A lebre começou o ano lectivo como a aluna mais distinta em corrida mas sofreu um colapso nervoso por excesso de trabalho em natação. O esquilo destacou-se na disciplina de trepar, até que manifestou um síndroma de frustração nas aulas de voo, em que o seu professor lhe dizia que começasse desde o chão, em vez de o fazer de cima de uma árvore. Por último, ficou doente com cãibras por excesso de esforço, e, então, classificaram-no com 12 em trepar e com 8 em corrida.

A águia era uma aluna problemática e teve más notas em comportamento. Na disciplina de trepar, superava todos os restantes alunos no exercício de subir até a copa da árvore, mas insistia em fazê-lo à sua maneira.

Ao terminar o ano, uma enguia anormal, que podia nadar de forma excelente e também correr, trepar e voar um pouco, obteve a melhor média e a medalha para o melhor aluno ...

Esta fábula ajuda-nos a reflectir sobre a diversidade de alunos e de alunas numa escola que tem na homogeneização o seu caminho e a sua meta. A "criança tipo" é um rapaz de raça branca que fala a língua hegemónica, que é católico, saudável, sem deficiências ... numa palavra, normal. É para ele que se dirige o discurso e é ele quem é proposto como modelo para todos (e, curiosamente, para todas).

Sempre se viveu a diferença como uma marca, não como um valor. Procurou-se a homogeneidade como uma meta e, ao mesmo tempo, como um caminho. Os mesmos conteúdos para todos, as mesmas explicações para todos, as mesmas avaliações para todos, as mesmas normas para todos.

Curiosamente, argumentava-se com a justiça como fundamento dessa uniformidade. Sem dar-se conta de que não há maior injustiça do que exigir o mesmo a indivíduos tão diferentes. Não é justo exigir que percorram o mesmo trajecto, em tempos exactos, um coxo e uma pessoa em perfeito uso das duas pernas. A injustiça é ainda maior quando as diferenças são cultivadas, procuradas e impostas. Voltando ao exemplo da corrida: seria razoável exigir um percurso igual a quem pode correr sem obstáculos e a alguém a quem se atou a um pé uma enorme bola de ferro? A bola de ferro de ser mulher, de ser pobre, de ser cigano, de ser imigrante ...

A diferença é consubstancial ao ser humano. Somos únicos, irrepetíveis, em constante evolução. Se um centímetro quadrado de pele (as impressões digitais) nos torna diferentes de milhares de milhões de indivíduos, o que fará a pele inteira? E o que se passará com o nosso interior, cheio de emoções, dúvidas, credos, valores, conflitos .. .? Disse uma vez que há dois tipos de crianças: os inclassificáveis e os de difícil classificação. Como é possível que tratemos todos por igual?

Diferenciam-nos as atitudes, as capacidades, as emoções, a cultura, a religião, a raça, o sexo (e o género), o dinheiro ... Nem todas as diferenças são do mesmo tipo e nem com todas elas se deve proceder da mesma forma.

Perante algumas diferenças, há que aplicar medidas de redistribuição. Se há pobres e ricos, o que deveríamos tentar é distribuir os bens de maneira a que as diferenças desaparecessem. Há diferenças que exigem outra actuação política e educativa. Se um é homossexual e outro heterossexual, a actuação pertinente não é igualá-los mas sim respeitá-los. Se um é católico, outro mórmon e o outro agnóstico, o que há a fazer é valorizar cada uma das opções, respeitar cada pessoa. Essas actuações são de reconhecimento. Por vezes, há que combinar as políticas de redistribuição com as de reconhecimento. Por exemplo, as mulheres têm que receber uma política de reconhecimentos (igual dignidade, iguais direitos, igual valor ... ), mas como, ao serem mulheres, têm salários inferiores e menor riqueza, devem também ser objecto de políticas de redistribuição.

A intervenção diferenciadora é ética, já que não há nada mais injusto do que tratar como iguais os que são radicalmente desiguais. Isso supõe um conhecimento de como é cada indivíduo, de como é o seu contexto e a sua história. Isso exige uma actuação metodológica e avaliadora que se adapte às características de cada um.

Quando se classificam alguns alunos como "anormais", que queremos dizer? Que não têm as mesmas potencialidades que os outros, que não reagem como os outros, que não falam como os outros ... Os outros são os normais, o protótipo. Desta forma, a "etiqueta" pesa sobre eles como uma pedra. Menos expectativas, menos estímulos, menos sucesso, menos felicitações, menos ... Que erro! Que horror!

A diferença é uma fortuna que enriquece a todos. Todos pode¬mos atingir o máximo desenvolvimento dentro das possibilidades de cada um. Por isso, é imprescindível mudar de concepção, romper com a tendência uniformizadora. É necessário conhecer o outro, aceitar o outro, amar o outro como é, não como gostaríamos que fosse.

A escola das diferenças humaniza-nos, faz-nos ser melhores. A escola das diferenças torna possível que todos possamos sentir-nos bem nela, que todos possamos aprender. Pelo contrário, a escola homogeneizadora aumenta e multiplica as vítimas.

O pato deixa de gostar da escola. Desnaturaliza-se. Acaba por nadar pior. Compara-se com os que trepam e voam e sente-se inferior. Chega a aprender a ridicularizar os que nadam pior que ele. Definitivamente, converte-se numa vítima.

É possível conseguir uma escola em que todos os meninos e meninas aprendam, se respeitem, gostem uns dos outros? É possível fazer da escola um reflexo do que deveria ser uma sociedade para todos, em que a justiça, a solidariedade e o respeito fossem as leis da convivência? Para lá vamos. Para isso trabalhamos.

Não correm tempos fáceis. Numa sociedade em que prima o individualismo exacerbado, a obsessão pela eficácia, a competitividade extrema, o conformismo social e o relativismo moral. .. , não é fácil ter em conta que a competição está manipulada. A aspiração máxima não é saber quem chega primeiro, mas sim como podemos chegar todos onde cada um pode chegar. A pretensão de uma sociedade justa será a de ajudar quem necessite de atenção especial porque parte de uma situação de inferioridade. A atenção à diversidade é então a causa da justiça.

Quando os desfavorecidos, ao passar pelo sistema educativo, se encontram novamente discriminados e prejudicados, estamos a converter a escola num mecanismo de iniquidade. Precisamente a instituição que deveria corrigir as desigualdades converte-se num elemento que as incrementa e potencia.

Como digo no meu livro A escola que aprende (Santos Guerra, 2000), é necessário que a instituição educativa se abra à aprendizagem, que se questione, que seja sensível à crítica, que analise as suas práticas. De outro modo, estará condenada à rotina, ao individualismo e ao fracasso. A escola não tem apenas a missão de ensinar. Para poder fazê-lo adequadamente, tem que aprender. As instituições inteligentes aprendem sempre. As outras tratam de ensinar com excessiva frequência.

Daqui faço votos por todos os educadores e educadoras que se ocupam com amor de cada menino, de cada menina, com as palavras de Miguel Hernández: "Voltaremos a brindar por tudo o que se perde e se encontra: a liberdade, a alegria e esse carinho que nos arrasta através de toda a terra".

 

Miguel Santos Guerra, No coração da escola. Porto:ASA