quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Zeca Afonso

 





“- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.

Gargalhada geral.

- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.

Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo, simpático.”

(...)

“- Repito – eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7º ano e puderem entrar na Faculdade. Isso, vocês têm que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para puderem combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.

Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos ensinarei. Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural”. Hélia Carvalho

 

Cerca de dois meses depois, Zeca Afonso foi preso.

 

 Em 1983, muito doente convidou Rui Pato (já médico) afastado das andanças dos acompanhamentos, para tocar consigo no concerto do Coliseu de Lisboa. Perguntou a Rui Pato o que queria tocar. Este respondeu: a “Canção de embalar”. Zeca responde que não sabe se a consegue cantar.

https://www.youtube.com/watch?v=l68SAEpesvI

 

 

À quinta música do alinhamento, do Concerto do Coliseu de Lisboa,  “Balada de Outono”',  José Afonso emociona-se, mas persiste em  cantar: “Águas das fontes calai / ó ribeiras chorai / que eu não volto a cantar”.

 

Claro que volta! Está no nosso

https://www.esquerda.net/dossier/zeca-afonso-suas-aulas-eram-absolutamente-revolucionarias/47134

https://radiocomercial.iol.pt/noticias/133490/despedida-de-zeca-afonso-no-coliseu-de-lisboa-foi-ha-40-anos