quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Canções do Niassa

 

"A ERVA LÁ NA PICADA"

I
A erva lá na picada
Pisam-na os guerrilheiros
O coração do soldado
Pisam-no os coronéis
E ajudam os machambeiros (Bis)

II
Que culpa tem o soldado
De ter raiva à sua sorte
Se chega um filho da puta
Que o mete numa farda
E o manda para a morte (Bis)

III
E o senhor brigadeiro
Vive muito consolado
Até comprou uma balança
Para pesar o dinheiro
Que rouba ao pobre soldado (Bis)

IV
Quando será Deus do céu
Que um dia haverá verba
Que um dia haverá verba
Para a malta comer pão
E os chicos erva erva /merda merda (Bis)

Merda merda!
Merda merda!
Merda merda!

Música da guerra civil espanhola, cujo tema foi tratado por um grupo de alferes milicianos, em que aborda os negócios escuros da guerra e da exploração do soldado, sempre o mais injustiçado. Feita em Nampula em 1970.

 

 

 "ADEUS NOVA VISEU"

I
A história que eu vou contar
P'ra velhinhos escutar
Na noite da despedida
Com orgulho ser lembrada
E também ser recordada
Tristezas da nossa vida

II
Chegou o dia da famba
Adeus poço da machamba
P'ra quem Jauá compreender
Adeus pontes e picadas
Picaretas e machadas
Serviste p'ra nos prender

III
Adeus Companhia moderna
Adeus ratos da caserna
Queixas de vós não há nada
Bons companheiros de leito
Encostados ao nosso peito
Éreis vós nossa alvorada

IV
Exponho meu sofrimento
Com orgulho e com alento
Desta vida amargurada
Adeus formigas do mato
Que quisestes fazer tacho
Da nossa carne cansada

V
Adeus pedreira adeus rio
Adeus trotil adeus fio
Alavancas e marretas
Casa de banho ainda existe
E tantas vezes serviste
P'ra tocar nossas cornetas

VI
Adeus Luanga e Lochese
Onde pisei muito os pés
Adeus Lumbenhe e Messal
Luatize e Iluminado

setstats1

 

 

"BOCAS BOCAS"

Bocas, bocas, bocas
Bocas, bocas, sois tão belas
Bocas, bocas, bocas estou farto delas

Boa terra é o Luângua
O bocas nos prometeu
Ai que bom que isto é
Dizes tu e eu
Façam pontes e picadas
Cheguem a Nova Viseu
(Bis)

(Era bom era, mas são)

Bocas, bocas, bocas
Etc.

Reuniram-se os cabeças
E decidiram por frim
Isto é muito pouco
Não fica assim
Façam pontes e picadas

E cheguem a Valadim

(Era bom era mas são)
Bocas, bocas, bocas
Etc.

Eu canto p'ra minha Mãe
Que p'ra tropa me viu nascer
Tenho pena meu filho
Não te posso valer
Tinhas razão mamãzinha
Estão fartos de me apalpar
Bis

(E infelizmente não são)

Agora canto p'rós "cabeças"
Que lá p'ra Nampula vivem
Vão a banquetes
Usam botões de punho
Mas quem se lixa é a malta
Que p'ró ano vai p'ró Lunho
Bis

(Era bom era, mas são)

Bocas, bocas, bocas
Bocas, bocas, sois tão belas
Bocas, bocas, estou farto delas

E deles também.


Sobre os boatos de guerra (bocas/mentiras) relativamente a alguns lugares muito perigosos
do Niassa.

 

setstats1

 

"CHECAS"

I
Ó Checa amigo checa
Cacimbado ando eu
Já estou farto disto tudo
Aqui em Nova Viseu

II
Já estou farto de picar
De fazer operações
De rios atravessar
Com água até aos calções

III
Já estou farto de buracos
Feitos pelas marmitas
Já estou farto de ir ao ar
E sem ver os terroristas

IV
Ó checa amigo checa
Na picada faz favor
Tu serás paraquedista
Ou piloto aviador

V
Comes feijão ao almoço
Comes feijão ao jantar
E quando não é feijão
É punga para variar

VI
Uma sopa de mosquitos
E de formas esquisitas
Dia sim dia não
Lá virão os ciclistas

VII
Ó checa amigo checa
Isto aqui é muito chato
Aturar a chicalhada
Que nunca saem para o mato

VIII
Esta guerra é dos soldados
E também dos furriéis
O resto dos graduados
Faz a guerra dos papéis

IX
Assim é Nova Viseu
E isto ainda aumenta
Isto é uma charanga
Na trinta e quatro setenta

 

 

"EI-LOS QUE PARTEM"

I
Ei-los que partem, olhos molhados
Coração triste, mochila às costas
Adeus aos seus entes amados
Ei-los que partem, olhos molhados


II
Virão um dia, ricos ou não
Contando histórias da sua guerra
Onde a dor se fez em pão
Virão um dia, ricos ou não


III
Ei-los que partem, olhos cansados
Já estão no fim da comissão
Alguns doentes e aleijados
Ei-los que partem pobres soldados
Ei-los que partem, pobres soldados
Ei-los que partem, pobres soldados

setstats1

 

"EMBOSCADA"

I
Em tempos tive a mania
Que não havia emboscada
Até que num lindo dia
Toda a minha companhia
Pelos turras foi avisada

II
A história que vou contar
Contou-ma certo velhinho
Quando eu vim para o Ultramar
Disse-me ele a sussurrar
Checa toma juizinho

III
E lá no mato cansado
De aspecto frio e sério
Há sempre um soldado
Prestes a ser emboscado
E a ir p'ró cemitério

IV
P'ró Niassa veio alguém
Com uma idéia aperrada
Ouve turra escuta bem
Que nós não queremos ninguém
Emboscado na picada

V
Perante a admiração de todos
Acabou-se a emboscada
Foi o Batalhão dos Rangers
Que deu porrada a rodos
Temos a guerra acabada

 

setstats1

 

 

"EMBOSCADA"
(COMPANHIA 3470)


I
A trinta e quatro setenta
Companhia corpulenta
Formada por atletas
Sofreu uma emboscada
Lá numa mata isolada
Quando todos eram checas

II
O pobre do capitão
Batia-lhe o coração
Por ser ele o comandante
Ao ver árvores crivadas
Por balas mal mandadas
Ficou todo radiante

III
O resto da Companhia
Os seus conselhos seguia
Como ele havia ordenado
Atiraram-se para o chão
Já com a arma na mão
Procurando um bom estado

IV
Depois de tudo acabar
Puseram-se a verificar
Se havia algo de sangrento
Um homem encorajado
Chamando os turras de lado
Era o nosso sargento

V
Ao chegarem ao quartel
Perguntei ao furriel
Se aquilo era o destino
Disse-me com satisfação
Que a arma que trazia na mão
Pertencia à Frelimo

 

 

"FADINHO SERRANO"


Muito boa noite senhoras e senhores
Os homens do Lunho são bons lutadores
São bons lutadores são bons guerrilheiros
Fazem horas extras sem ganhar dinheiro

Sem ganhar dinheiro em nada se ficam
Nos dias de folga vão p'rá pá e pica

Fazemos machambas e nasce o que é bom
No rancho comemos sopa de feijão
Sopa de feijão, grelos com cristas
Para variar comemos ciclistas
Comemos ciclistas com molho e salada
Fome não passamos, mas fartura nada.

Roupa que não falta
A verdade é uma
Até colchões temos
E de lusospuma

Para não estragar
Fazemos um esforço
Ou mandam para o mato
Ou pôr de reforço

Pôr-nos de reforço
Já sabem quem são
Colchões para durar
Outra comissão


(Machambas/Hortas)

setstats1

 

"FADO A METANGULA"

Tens belas ruas, tens avenidas
Tens tantas coisas que nos são queridas
Tens aeroporto, tens aviões
Tens bom cinema, tens diversões


Recentemente já rádio há
Nem há paisagem como a de cá
Tens pôr-do-sol visto de graça
És a mais linda deste Niassa


Ó Metangula
És afinal
Grande "cidade" de Portugal
Tens tantas coisas
Boas e belas
Que nós ficamos
Loucos com elas


Ó Metangula
Tu tens razão
Já só te falta
Televisão
Vais dentro em pouco
Ser das primeiras
Mas só não tens é
Mulheres solteiras



O autor deste fado, com optimismo, vê Metangula por um prisma muito favorável, levado pelo progresso e olhado com muito exagero! Mas no entanto, como se deduz do estribilho, ainda há muita coisa que falta!!!

setstats1

 

 

"FADO A METANGULA"

Tens belas ruas, tens avenidas
Tens tantas coisas que nos são queridas
Tens aeroporto, tens aviões
Tens bom cinema, tens diversões


Recentemente já rádio há
Nem há paisagem como a de cá
Tens pôr-do-sol visto de graça
És a mais linda deste Niassa


Ó Metangula
És afinal
Grande "cidade" de Portugal
Tens tantas coisas
Boas e belas
Que nós ficamos
Loucos com elas


Ó Metangula
Tu tens razão
Já só te falta
Televisão
Vais dentro em pouco
Ser das primeiras
Mas só não tens é
Mulheres solteiras



O autor deste fado, com optimismo, vê Metangula por um prisma muito favorável, levado pelo progresso e olhado com muito exagero! Mas no entanto, como se deduz do estribilho, ainda há muita coisa que falta!!!

setstats1

 

 

 

"FADO A UM AUTOR DESCONHECIDO"

I
Desconhecido autor "porreiro"
A ti devemos tod'o nosso Cancioneiro
Em fado lento em fado antigo
O teu talento foi o nosso melhor amigo

II
Cantaste o fado cantaste a raça
Disseste em verso da beleza do Niassa
Disseste até sem uma falha
A vida triste que cá viv'esta "maralha"

III
Tempo esquecido
Que ao passar
Só a saudade por castigo faz ficar
"Desconhecido"
Vais-nos deixar
Ó Metangula tens razão para chorar

IV
Virão mais checas virá mais malta
Tal como nós hão-de sentir a tua falta
Serás cantado tenho a certeza
A tua ausência lembraremos com tristeza

V
Já lá vai longe foi há um ano
Que nos deixaste grande amigo Adriano
Vamos voltar vamos-te ver
P'ra nosso fado todos juntos reviver



Esta composição é dedicada ao Autor Desconhecido a cujo entusiasmo, veia poética e garra fadista
se deve a concretização do sentimento que em nós existia e só ele soube cantar.
Como testemunho do muito apreço e gratidão da "maralha".

 

 "FADO DA DESPEDIDA"

I
Adeus Metangula
Adeus Comissão
Já vou p'rá cidade
Até me dá vontade
De m'andar p'ró chão
Deixei o farol
Que o controlo regula
Vou pelo caminho
Dizendo baixinho
Adeus Metangula

II
Adeus Cobué, Manhai
Ah! Lipoche "Good bye
A zona que é mais pachola
Adeus ó ondas malucas
Que daí às Melulucas
É sempre a bater cachola

Adeus Metangula
Adeus Comissão
...

III
Adeus ó Lago Niassa
Só conhece quem lá passa
Onde se dorme bem ao luar
Adeus ó turras banais
A mim não me lixais mais
Agora vou descansar

Adeus Metangula
Adeus Comissão
Já vou p'rá cidade
Até me dá vontade
De m'andar p'ró chão
Deixei o farol
Que o controlo regula
Vou pelo caminho
Dizendo baixinho
Adeus Metangula


Este fado cantava-se no fim da comissão. Um misto de saudade que aparecia mas com um desejo perfeitamente natural de lá sair.
Felizes os que puderam cantar este fado.

 

 

"FADO DA ESCURIDÃO"

Oh tempo volta p'ra trás
Traz-me tudo o que eu perdi
Tem pena e dá-me
A luz que eu já vivi
Oh tempo volta p'ra trás
Mata a minha esperança vã
Vê que até o próprio sol
M'ilumina de manhã

O sol já se foi embora
O tempo p'ra mim parou
Cortaram-me a luz cá fora
Cá em casa ela acabou
Os dias p'ra mim são dias (Bis)
As noites p'ra mim são meses
Recordação é saudade
Daquela claridade
Que hoje só temos às vezes

Oh tempo volta p'ra trás
Traz-me tudo o que eu perdi
....

Agora só temos sombra
Nem sequer ventilação
Eu já perdi toda a esp'rança
De ter iluminação
Quero ler mas não consigo (Bis)
Água fresca é só d'outrora
Viver assim é castigo (Bis)
Até que me for embora

Oh tempo volta p'ra trás
Traz-me tudo o que eu perdi
....

 

Este fado foi inspirado quando houve corte de energia eléctrica durante uns meses, por razões
de ordem técnica!

"FADO DA JÚLIA GOLPISTA"

I
A Júlia golpista
Grande vigarista
Veio a Metangula
Passando por "tia"
Dum alferes rufia
Que foi p'ra Nampula


II
Chegou de avião
Com aspiração
De todos fintar
Quer queiram quer não
Dão-me um dinheirão
E hei-de-o livrar


III
Ah Júlia golpista
Que grande mulher
Vai pedir mais massa
A quem a tiver
Júlia vigarista
Tu não és culpada
Tu és uma artista
Teu falar conquista
Toda esta cambada


IV
Há quem te critique
Quem diga que fique
À espera que voltes
Com tanta limpeza
Não há com certeza
Quem saiba mais golpes


V
Vamos juntar massa
Se vens ao Niassa
Estás no pensamento
Da malta que aspira
Que talvez um dia
Tenha abatimento

Ah Júlia golpista
Grande mulher
...




Assunto delicado de explicar. É preciso ter-se "lata", quando sucede o que sucedeu em Metangula, em Junho de 1969.
Resta dizer que a coisa não foi tão longe como se julgava, embora o mais difícil tivesse sido feito e finalmente... o indivíduo voltou às fileiras.

"FADO DA RENDIÇÃO"


Perguntaste-me outro dia
Quando é que me vou embora
Eu disse-te que não sabia
Quando chega a minha hora
Passo os dias sem saber
Contando o tempo que passa
Já parei de viver
Desde que vim p'ró Niassa.


Horas esquecidas
Que são perdidas
Vidas sem se viver
Dia após dia
Sinto a magia
Do tempo assim perder
O dia corre
E a esperança morre
Sem que o final se veja
Talvez p'ró ano
Num desengano
'Inda cá estejas


Meu "mata-bicho" já conta
Três meses de comissão
O meu nome não se encontra
No plano de rotação
Mas agora estou contente
Pois acabo de saber
Já apareceu de repente
Um "Checa" p'ra me render


Horas esquecidas
Que são perdidas
.....



Este fado traduz o estado de espírito do pessoal em comissão, quando, para além dos dois anos por tabela, ainda lhes era imposto o "mata-bicho", ou seja, tempo a mais por falta de quem os rendesse.

setstats1"FADO DAS COMPARAÇÕES"

Que estranha forma de vida!
Que estranha comparação!
Vive-se em Lourenço Marques (Bis)
Cá arrisca-se o coirão!

Vida boa! Vida airada!
"Boites", é só festança!
Lá não se fala em matança (Bis)
Nem turras; há só borgadas.

Niassa, pura olvidança!
Guerra, como és ignorada!
Conversa que é evitada (Bis)
P'los que vivem n'abastança!

Falar na nossa desdita
Fica mal e aborrece!
E como lembrar irrita (Bis)
Toda a gente a desconhece!

Ao passar pela cidade,
Com tanta tranquilidade,
Deu-me comparar
Meninas com mini-saias!
Mandai-as p'ras nossas praias
P'ra "manobra de atacar"!

Hippies com carros GT's
Mandai-os para as berliets
Tirai-lhes as modas finas
Melenudos efeminados
Eram bem utilizados
P'ra fazer rebentar minas!

Bem como essas tais meninas
Que apesar de enfezadinhas,
Mas com ar da sua graça
Serviriam muito a jeito
Para aliviar a dor do peito,
Cá da malta do Niassa.

Mas não, só por pirraça,
Hão-de lá continuar!
E nós temos de lerpar,
Invertem-se as posições!
E trocam-se as situações!
Continuamos a aguentar!

Nós sem sermos desejados
Ficamos cá apanhados
Aos urros, num desvario!
Eles, os daqui naturais,
Gastando dinheiro aos pais
Vão p'ra p... que os pariu!

Acabe-se com a tradição!
Entre-se em mobilização!
Utilize-se a manada!
Dentro de poucas semanas,
Como quem come bananas!
Estará a Guerra acabada.


Este é um fado que compara algumas coisas que se passavam. Não é um fado para ofender, e era cantado em ambientes muito particulares e com público esclarecido!
De resto, como todo o cancioneiro, sobressai sempre o aspecto humorístico com que todos os
temas são abordados.

 

 

 

"FADO DAS COMPARAÇÕES"

Que estranha forma de vida!
Que estranha comparação!
Vive-se em Lourenço Marques (Bis)
Cá arrisca-se o coirão!

Vida boa! Vida airada!
"Boites", é só festança!
Lá não se fala em matança (Bis)
Nem turras; há só borgadas.

Niassa, pura olvidança!
Guerra, como és ignorada!
Conversa que é evitada (Bis)
P'los que vivem n'abastança!

Falar na nossa desdita
Fica mal e aborrece!
E como lembrar irrita (Bis)
Toda a gente a desconhece!

Ao passar pela cidade,
Com tanta tranquilidade,
Deu-me comparar
Meninas com mini-saias!
Mandai-as p'ras nossas praias
P'ra "manobra de atacar"!

Hippies com carros GT's
Mandai-os para as berliets
Tirai-lhes as modas finas
Melenudos efeminados
Eram bem utilizados
P'ra fazer rebentar minas!

Bem como essas tais meninas
Que apesar de enfezadinhas,
Mas com ar da sua graça
Serviriam muito a jeito
Para aliviar a dor do peito,
Cá da malta do Niassa.

Mas não, só por pirraça,
Hão-de lá continuar!
E nós temos de lerpar,
Invertem-se as posições!
E trocam-se as situações!
Continuamos a aguentar!

Nós sem sermos desejados
Ficamos cá apanhados
Aos urros, num desvario!
Eles, os daqui naturais,
Gastando dinheiro aos pais
Vão p'ra p... que os pariu!

Acabe-se com a tradição!
Entre-se em mobilização!
Utilize-se a manada!
Dentro de poucas semanas,
Como quem come bananas!
Estará a Guerra acabada.


Este é um fado que compara algumas coisas que se passavam. Não é um fado para ofender, e era cantado em ambientes muito particulares e com público esclarecido!
De resto, como todo o cancioneiro, sobressai sempre o aspecto humorístico com que todos os
temas são abordados.

 

 

 

"FADO DAS PARTITURAS"

I
Sem tua ajuda
Eu não consigo cantar
E nas noites de loucura
Não me é fácil decorar
Oh Bettencourt
Tem paciência vai lá fora
E traz-me para eu brilhar
Todas essas partituras

II
Tu sabes bem
Que eu sem ti não sou ninguém
Sou capaz de me enganar
Começo a desafinar
Oh Bettencourt
És a alma da canção
Vai depressa e vem depressa
E ensina-me a lição

III
A qualquer hora
Tu estás pronto a ir buscá-las
E nunca te vais embora
Sem tornar a recebê-las
Guardas p'ra sempre
Num pacote trapalhão
As partituras d'outrora
Com imensa devoção

IV
Tu sabes bem
Que eu sem ti não sou ninguém
Sou capaz de me enganar
Começo a desafinar
Oh Bettencourt
És a alma da canção
Vai depressa e vem depressa
E ensina-me a lição

 

Este fado é uma paródia que o fadista dedica ao seu amigo das partituras. Sem ele, como conseguiria
decorar tanto verso?!!!

"FADO DO ANTONINHO"

I
Foi no domingo passado que eu passei
À casa onde vivia o Antoninho
Mas está tudo tão mudado
Que não vi em nenhum lado
Os tais agentes da Pide bonitinhos

II
Do rés-do-chão ao telhado
Não vi nada nada nada nada que fizesse
Recordar a tal vidinha
Já não há vidros pregados reforçados
Guardados com tabuinhas

III
Entrei onde era a casa agora está
À secretária um sujeito uma delícia
Não vi bombas nem espingardas
Nem revólveres nem espadas
Nem espreitadelas furtivas da polícia

IV
O tempo cravou a garra
Na alma daquela casa
Onde às vezes parecia não ter gente
E onde em noites de segredo a meter medo
Lá surgia o Presidente

V
As janelas tão medonhas que ficavam
Com cortinas a tapar a velharia
Ganharam de novo a graça
Pois são hoje umas vidraças
Já livres de toda a porcaria

VI
E lá p'ra dentro quem passa
Hoje é para ir ao Marcelo
Entregar ao Presidente um pedidinho
Pois chega a esta desgraça toda a graça
Com a doença do velhinho

VII
P'ra terem feito da casa o que fizeram
Melhor fora que a mandassem p'rás alminhas
Pois na casa de Saúde
Provas de amor amiúde
É idéia que não cabe cá nas minhas

VIII
Recordações do pavor
D'avareza e do terror
Vamos procurar esquecer nas cervejinhas
Pois dar de beber à dor é o melhor
Já dizia a Mariquinhas

Versos feitos provavelmente por civis que parodiavam a "Primavera Marcelista", "evolução na continuidade", "doença de Salazar".




"FADO DO BULDOZER"

I
Quando ele passa
É num instante que arrasa
Tudo que querem que faça
Num minuto é conseguido
Toda a picada
Velozmente é transformada
Fica melhor que auto-estrada
Levando tudo varrido

II
És infernal
Meu buldozer bestial
Para a frente e para trás
Nem teu ruído incomoda
Quando ele passa
Levando tudo que arrasa
Fazendo caminho ou praça
És o invento da moda

III
Foste ansiado
Foste querido e desejado
Dizem que és quase roubado
Mas por fim apareceste
Há tanta obra
Que só com tua manobra
E tua força que sobra
Finalmente resolveste

IV
Meu caterpilar
Minha máquina infernal
Eu sou feliz afinal
Por poder contar contigo
Minha obra prima
Ando p'ró lado e p'ra cima
Avança, vence e domina
Tu és o melhor amigo


Foi com ansiedade que esta fabulosa máquina foi esperada na Base Naval de Metangula, no início
do segundo trimestre de 1969.
Ruído mecânico que foi sinónimo de progresso. Por isso o Buldozer mereceu um fado!

"FADO DO CHECA"

I
Benvindo Checa
P'ra esta guerra
Que cá te espera
Não estejas triste
Que a guerra é linda
Só fazes cera.
Vais ter saudades
De mulheres brancas
Ai que tormentos;
Aqui há pretas
Mas tem cuidado
C'os seus lamentos

II
Checa danado
Pela tropa muito lixado
Não chores oh desgraçado
Não vale a pena chorar
Checa benvindo
Chegaste a horas
Eu já vou indo
Afinal mal encavado
Que vieste cá fazer
Checa danado
Vieste p'ra me render

II
Vais "lerpar" muito
Mas com o aumento
Vais ficar rico.
Dá-o às pretas
Pois assim fazes
A tua "psico":
Mas tem cuidado
Checa danado
Sê pouco anjinho
Manda-os lixar
E faz a tua guerra
Sózinho

 

No Norte de Moçambique, especialmente no Niassa, "CHECAS" eram os que chegavam de novo, iniciavam portanto a sua comissão.
Neste fado aparece o termo "lerpar" que no Niassa era sinónimo de tudo, desde
"ficar a perder" até "morrer". Aqui é empregue como "ter que passar maus bocados".

 

 

"FADO DO DESERTOR"

Estava eu na minha terra
Disseram-me vais para a guerra

Toma lá uma espingarda
E um bilhete p'ró navio
E uma medalha num fio
E uma velha, velha farda

Após dias de caminho
Estava já muito magrinho

Esfomeado como um rato
Olhei bem só vi palmeiras
Macacos e bananeiras
Entendi, estava no mato

O furriel e o sargento
Chamavam-me fedorento

Porque me queria lavar
E o alferes e o capitão
Diziam que era calão
Se me viam descansar

Estava tão farto da guerra
E ao lembrar a minha terra

Fui um dia passear
Numa palhota sózinha
Estava uma preta girinha
Que ao ver-me pôs-se a chorar

E fiquei com tanta pena
Dessa mocinha morena

Que fugimos para o mato
Somos um casal feliz
E já temos um petiz
Que por sinal é mulato

Este fado documenta uma realidade histórica porque muitos soldados desertaram mesmo.

setstats1

 

"VENTOS DE GUERRA"

De quantos sacrifícios senhores que em mim mandam
É feita a vida dum soldado
De quantas noites perdidas no mato
É feita vida dum guerreiro
São ventos de guerra
Não penses amigo
Que a hora que passa é de perigo

De quantos tiros senhores que me ordenam
É feita a vida dum soldado
De quantas minas senhores que em mim mandam
É feita a vida dum guerreiro

Quem limpa senhores as manchas de sangue
Que os jovens deixam na picada
Quem limpa senhores lágrimas choradas
Por noivas e mães adoradas

São ventos de guerra...
São ventos de guerra...

De quantas saudades senhores que em mim mandam
É feita a vida dum soldado
E quantas loucuras senhores que me ordenam
Contém a vida dum guerreiro

De quantos desgostos senhores que em mim mandam
É feita a vida dum soldado
E quanto vinho senhores que me ordenam
Se deve beber p'ra esquecer

São ventos de guerra
São ventos de guerra

E quantas vezes senhores que em mim mandam
Se deve expor a vida ao perigo
E quantos gritos se devem soltar
Para se acreditar que está vivo.

Quantas idéias tombadas na luta
Quantas esperanças perdidas
Quanto sangue deve um jovem verter
Antes que o chamem de homem

São ventos de guerra...



"E quanto vinho senhores que me ordenam/Se deve beber p'ra esquecer"
E a quantos Ex-Combatentes estes versos se aplicam ainda hoje? São as marcas duma guerra.

 

"UNANGO - TANGO"

Adeus oh Lunho, inferno da minha vida
Terra lixada e sem igual
Adeus Felgar, adeus azar, é a despedida
Vamos embora, vamos para outra vida.
Ai que contentes ora nós já nos sentimos
Com os cabeças que decidimos
Aqui estamos nós de novo a cantar
Esta cantiga que é para obsequiar


Por toda a vida nós iremos recordar
Quem nos mandou para aqui gozar
E àquele homem que soberbo decidiu
Nós mandaremos para a p... que o pariu
Cantam de novo as nossas bocas já cansadas
É injustiça esta tourada
E aqui poremos direitinho neste tango
Estou farto deles aqui mesmo no Unango.

 

"TURRA DAS MINAS"

I
O turra das minas
Pequeno e traquinas
Lá vai na picada
E a malta escondida
Na mata batida
Monta a emboscada.
O turra passou
A malta esperou
Já toda estafada
E a Berliet
Sempre foi estoirada.

II
Oh turra das minas
A tua vida agora
É pôr as "marmitas"
Pela estrada fora.
Oh turra das minas
Tua arma soa
Por léguas e léguas
Aqui no Niassa
Onde a Guerra entoa.

III
Há mortos e feridos
E os mais comidos
Somos sempre nós,
Vamos pelos ares
Gritando por todos
Até pelos avós.
Oh turras bairristas
Mas pouco fadistas
Já é tradição
Ser paraquedista
Sem tirar o curso
Ai isso é que não.

Oh turra das minas
A tua vida agora
...


Fado de humor em que, como o nome indica, é o "turra" (terrorista) que põe as "marmitas" (minas)
nas "picadas" (caminhos através do mato)


setstats1

 

 

"TABERNA DO DIABO"

I
Um dia fui dar com Deus
Na taberna do diabo
Entre cristãos e ateus
Fizeram de mim soldado

II
E eu sem querer fui embarcado (Bis)
Levei armas e um galão
Pr'ó outro lado do mar
Quis levar o coração
Não mo deixaram levar

E eu sem querer ia matar (Bis)

III
Deram-me uma Cruz de Guerra
Quando matei meu irmão
E a gente da minha terra
Promoveu-me a capitão

E eu sem querer fiquei papão (Bis)

IV
Todos me chamam herói
Ninguém me chama Manel
Quem quer uma Cruz de Guerra
Que eu já não vou pr'ó quartel

Que eu já não vou pr'ó quartel (Bis)

 

Feito em Braga no ano de 1966 por Manuel António Gouveia Ferreira, que o levou para Moçambique (1969).
Reflecte os medos da geração de então face à Guerra Colonial, um muro a transpor. Muitos desertaram, muitos não e foram sem mais voltar "a acender no meu o seu cigarro".

 

 


setstats1"SERENATA"

I
Anda vem comigo
Fazer uma serenata
Anda que o ar é fresco
E a lua estiva é prata

II
Homens de rosto duro
Avançam pela picada
Partem de olhar em prumo
Chegam de cara crispada

III
Vieram de camponeses
Outros foram estudantes
Hoje de armas em punho
Tornaram-se assaltantes

IV
Pedidos de helicópteros
Para nunca chegar
Não resta outra sorte
Que o corpo sepultar

V
Os dias depois da chega
De tudo se consumar
Porque ao senhor comandante
Apeteceu passear

VI
Cá ao Norte do Candulo
Onde a fama não se acaba
Já vejo os meus abutres
Mas os gajos não se ralam

VII
Aos grandes ídolos da Nação
Que tenho para te dar
Secaram as minhas fontes
Agora só o cantar.


setstats1

 

"POEMA DO MILITANTE"

Mãe,
Eu tenho uma espingarda de ferro!
O teu filho,
Aquele a quem um dia viste acorrentarem
E choraste,
Como se as correntes prendessem e ferissem
As tuas mãos e os teus pés
O teu filho já é livre, Mãe!
O teu filho tem uma espingarda de ferro
A minha espingarda
Vai quebrar todas as correntes,
Vai abrir todas as prisões,
Vai matar todos os tiranos,
Vai restituir a terra ao nosso povo,
Mãe, é belo lutar pela liberdade!
Há uma mensagem de justiça em cada bala
que disparo
Há sonhos antigos que acordam como
pássaros
Nas horas de combate, na frente de batalha,
A tua imagem próxima desce sobre mim.
É por ti também que eu luto, Mãe.
Para que não haja lágrimas nos teus olhos.

 

Poema encontrado numa base da Frelimo na zona do Lunho.


 

"LUTA PELA VIDA"

Venham velhos doutores e os que contam histórias
Venham ver os que lutam sem querer buscar glórias
Anda ver meu irmão os que tombam no chão
Frente à morte na luta pela vida

Venham ver os que vivem e apostam na sorte
Venham ver os que dormem nos braços da morte
Venham ver como é que se luta com fé
Frente à morte na luta pela vida

Se há um jovem que tomba outro se levanta
Se há um jovem que chora há outro que canta
Anda ver meu amigo os que riem do perigo
Frente à morte na luta pela vida

Sabem todos que a vida é caminho duro
E que a força das armas defende um futuro
Que se guarde a imagem da imensa coragem
Frente à morte na luta pela vida

Venham velhos doutores e os que contam histórias
Que se guarde p'ra sempre nas vossas memórias
Que assim tomba no chão a minha geração
Frente à morte na luta pela vida
Frente à morte na luta pela vida

 

Um hino à coragem dos jovens, resumida no verso "Que assim tomba no chão a inha geração"


"LAMENTO DO NIASSA"

I
Num beco no cú de Judas
Sem ter miúdas
Sem ter ninguém
Vivia a maralha toda
Sem ter quem... lixar
Sem ter com quem

II
Era um sítio "estaporado"
Mal parido, condenado
Um local abandonado
Onde se cantava o fado
Cada qual mais apanhado

III
Aqui no Niassa
Eu me estou lembrando
No dia que passa
E em que vou lerpando
Saudades é mato
Das farras d'outrora
Niassa estaporado
Deixem-me ir embora

IV
Voltaria a ser quem era
Nada mais bera
Qu'esta saudade
Regressava à vida boa
Dessa Lisboa
Grande cidade

V
Procurava os meus amores
P'ra mitigar minhas dores
Boémio e ar de fadista
Deixava a perder de vista
Todos os conquistadores



"Saudades é mato" - (bastantes saudades)

"HINO DO LUNHO"


No céu cinzento sob o astro mudo
Batem as hélices, na terra esquentada
Vêem em bandos, com pés de veludo
Chupar o sangue fresco da manada

Estou farto deles
Estou farto deles
Só mandam vir
E não fazem nada

S'alguém se engana com o seu sorrir
E lhes franqueia as portas à chegada
Só mandam vir, só mandam vir
Só mandam vir e não fazem nada

Quantas mercedes, senhor capitão,
Até agora foram fornicadas?
Eu bem lhe disse que pusesse os homens
Picando minas, fazendo emboscadas

A toda a parte chegam helicópteros
Poisam nos tandos, poisam nas picadas
Trazem no ventre as cabeças de oiro
Que de guerrilha não percebem nada

Foi de propósito
Foi de propósito
Foi de propósito
Qu'ela foi estoirada

São os reizinhos do Niassa todo
Senhores por escolha, mandadores sem punho
Aceitam cunhas e dizem que não
Passam as rondas sobre o céu do Lunho

No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas de um credo
E não se esgota o sangue da manada

Só quero feridos à segunda-feira
Não quero mais evacuações
O inimigo deve conhecer-se
Vamos chamá-lo para as inspecções

Fazendo a estrada sobre o chão de greda,
Fazem-se aterros, pontes e ontões
Ouvem-se os tiros, lá na emboscada
Aqui no Lunho é que há leões...

Agora queriam arrasar o Lunho
Deixar a estrada, abandonar a pista
É muito bom, já ninguém duvida
Deixa contente qualquer terrorista

Ouve-se um estrondo, todo o chão tremendo
Saltam as chispas com grande estupor
Soam as tubas, o que terá sido?
Mudou o chefe este sector

Acaba a guerra
Eu cá sou bom
Sou candeeiro
E também Fourgon

Estou farto deles
Estou farto deles
Só mandam vir
E não fazem nada

Tremem as paredes de qualquer quartel
Falam militares, anda tudo à bulha
Ri-se o capitão, ri-se o coronel
Com esta moda da mini-patrulha

Estou farto deles
Estou farto deles
Só mandam vir
E não fazem nada

Por uma ponte sem terminação
O nosso sangue foi sacrificado
Mas aleluia, não será lembrado
Pelas cabeças d'ar condicionado

Encher o peito de metal brilhante
É essa a sua aspiração
Para isso deixa os turras sózinhos
Dentro da linha de contenção

Estou farto deles
Estou farto deles
Só mandam vir
E não fazem nada

Deixem crescê-los
Organizá-los
Depois eu
Deito-lhes a mão

S'alguém se engana com o seu sorrir
E lhes franqueia as portas à chegada
Só mandam vir
Só mandam vir
Só mandam vir
E não fazem nada

Estranha maneira de tratar o cancro
Que se propaga por nossa nação
Ele será leigo ou talvez ceifeiro
Mas nunca médico ou cirurgião


O "Hino do Lunho", para os que acompanharam a época era um desabafo sem qualquer idéia subversiva, embora algumas das quadras sejam violentas e possam parecer conterem algo
mais reprovável, o que não é o caso. Predomina o protesto e como sempre a crítica vem ao de cima.
O Lunho, povoação do Niassa Ocidental, era "duro de roer" para quem lá esteve, por vezes mais de um ano.


"HINO DE VILA CABRAL"

I
No dia em que lá chegámos
Contentes ficámos admirados
Vimos moças engraçadas
Nos parques sentadas
Com seus namorados

II
Em seguida toda a malta
Foi dar uma volta
E até por sinal
Ficámos admirados
Com os autocarros de Vila Cabral
(Bis (Troley carros)

III
Depois fomos em seguida
Por uma avenida
Que é de encantar
E então só de passagem
A linda paisagem
Fez-nos delirar

IV
Vimos coisas tão bonitas
Que atraem turistas
E os faz pasmar
E fomos de madrugada
À sardinha assada
À feira popular

V
Depois fomos mais além
E vimos também parques infantis
P'ra vermos coisa mais fina
Fomos à piscina ver os biquinis

VI
No fim vimos muita gente
E disse contente o amigo Amaral
Com tanta coisa que ver
Dá gosto viver em Vila Cabral
(Não! Não!) Com tanta coisa que rir
Dá gosto fugir de Vila Cabral
Deu gosto fugir de Vila Cabral.

 

(Letra de Carlos Macedo)
"Tudo o que não havia e fazia muita falta à malta..."

 

  

"HINO DE OLIVENÇA"

I
Lá, Lá, Lá, Olivença
Lá, Lá, Lá, Olivença
Capital do Nunca Mais
Onde a malta é toda fixe
Olivença terra sem jornais
Mesmo junto ao Lipiriche

II
De repente um grito na rota
Assinala que o avião vem
Que importa táxi ou Dakota
Se trás correio e tabaco também

III
Se quiseres um bom manjar
Vai falar com o cozinheiro
Um bom arroz a fartar
E também tampas de morteiro

IV
Quem por aqui passou
Nunca mais se esquecerá
Se dos turras não lerpou
Também de saudades não morrerá
Lá, Lá, Lá, Olivença
Lá, Lá, Lá, Olivença


"HINO À MINHA TERRA"


Amanhece
sobre as cidades do futuro.

E uma saudade cresce no nome das coisas
E digo Metengobalame e Macomia
E é Metengobalame a cálida palavra que os negros inventaram
E não outra Macomia

E grito Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E torno a gritar Inhamússua, Mutamba, Massangulo!!!
E outros nomes da minha terra
Afluem doces e altivos na memória filial
E na exacta pronúncia desnudo-lhes a beleza.

Chulamáti! Manhoca! Chinhambanine!
Morrumbala, Namaponda, e Namarroi
E com o vento a gritar sensualmente as folhas dos canhoeiros
Eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene e Zóbué
E colho as sementes do cutilho e a raíz da txubula
E mergulho as mãos na terra fresca de Zitundo.

Oh as belas terras do meu áfrico país
E os belos animais astutos
Ágeis e fortes dos matos do meu país
E os belos rios e os belos lagos
E os belos peixes
E as belas aves dos céus do meu país
E todos os nomes que eu amo belos da língua ronga
Macua, suaíli, changana
Xítsua, e bitonga
Dos negros de Camunguine, Zavala, Meponda, Chissibuca
Zongoene, Ribáué e Mossuril.
- Quissimajulo! Quissimajulo! Gritam as bocas autênticas no hausto da terra.
- Aruângua! Responde a voz dos ventos na cúpula das micaias.
E o luar de cabelos de marfim nas noites de Morrupula
E nas verdes campinas das terras de Sofala a nostalgia sinto
Das cidades inconstruídas de Quissico
Dos chindjinguiritanas no chilro tropical de Mapulanguene
Das árvores de Namacurra, Muxilipo, Massinga
Das inexistentes ruas largas de Pindangonga
E das casas de Chinhanguanine, Mugazine e Bala-Bala
Nunca vistas nem jamais sonhadas ainda.

Oh, o côncavo seio azul-marinho da baía de Pemba
E as correntes dos rios Nhacuaze, Incomáti, Matola, Púnguè
E o potente espasmo das águas do Limpopo.
Ah! E um cacho das vinhas de espuma do Zambeze coalha ao sol
E os bagos amadurecem fartos um por um
Amuletos bantos no esplendor das mais belas vindimas.

E o balir pungente do chango e da impala
O meigo olhar negro do xipene
O trote nervoso do egocero
A fuga desvairada do inhacoso bravo no Funhalouro
O espírito de Mahazul nos poentes da Munhuana
O voar das sécuas na Gorongoza
A xidana-kata nas redes dos pescadores a Inhaca
A maresia no remanso idílico de Bilena Macia
O veneno da mamba no capim das terras do régulo de Santaca
A música da timbila e do xipendana
O ácido sabor da nhantsuma doce
O sumo da mapsincha madura
O amarelo quente da navúngua
O gosto da cuácua na boca
E o feitiço misterioso de Nengue-wa-Suna.

Meus nomes puros
Dos tempos de livres troncos de chanfuta, umbila e mucarala
Livres estradas de água
Livres pomos tumefactos de sémen
Livres shingombelas
E chigubos completamente livres!
Grito Nhanzilo, Eráti, Macequece
E o eco das micaias responde Amaramba, Murrupula, Nuanacamba
E os nomes virgens eu renovo o seu mosto
E sem medo um negro queima as cinzas e as penas de corvos de agoiro
Não corvos sim manguavavas
No esconjuro milenário do nosso invencível Xicuembo!

E um som de xipalapala exprime
Os caninos amarelos das quizumbas ainda
Mordendo agudas glandes intumescidas de África
Antes da circuncisão ébria dos tambores incandescentes da lua nova.
"FADO POR ESCOLHA"


I
Se estou muito chateado
Canto o fado
E mesmo muito lixado
Canto o fado
Quando me sinto apanhado
Canto o fado


II
Nesta vida de marinha
Quero só saber da minha
Não ser nunca incomodado
Eu só quero vida boa
Nunca sair de Lisboa
Nunca ir p'ra nenghum lado


III
Desde que vim p'ró Niassa
Vejo a vida a andar p'ra traz
Isto foi uma desgraça
Esta "escolha" não se faz


IV
Nem mesmo sei dizer
Se sou bom ou fui comido
Penso que me fazem crer
E eu estou mesmo a ver
É a canção do bandido


V
Se estou muito chateado
Canto o fado
E mesmo muito lixado
Canto o fado
Quando me sinto apanhado
Canto o fado


Nesta vida de marinha (tropa) / Quero só saber da minha (borga)


"FADO JOÃO PENEQUE"

I
Tua garganta tua voz d'ouro
Toda a magia do teu cantar
Adeus fadista, adeus tesouro
Teu belo fado vai-nos deixar

II
Tens d' ir embora tu já cumpriste
Fica a saudade da tua voz
Adeus Peneque, partes é triste
Tu ficarás sempre entre nós

III
Recordações dessas noitadas encantadas
Com teus cantares a noite passa
Vais ter saudades das ceatas e das farras
Adeus fadista do Niassa

IV
Leva a guitarra por companheira
Génio do fado que vais embora
Tu vais cantar a vida inteira
Serás artista p'la vida fora

V
Tu foste sempre um bom amigo
Alma boémia, companheirão
O fado todo parte contigo
Adeus fadista, adeus João


Este fado foi dedicado ao grande fadista João Peneque, pela malta amiga do Niassa.


"FADO DO RENDER DA GUARDA"

I
Vou-me embora
Hora triste
E a minha voz não resiste
A cantar em tom magoado

II
Volto à terra
Falta pouco
Já estou num desejo louco
Que o meu coração encerra

III
Sinto vontade
De acabar com esta guerra
Mas domina-me a saudade
Que vou deixar nesta terra

IV
E se inda agora
Estava alegre e bem disposto
Ao ver que chegou a hora
Vou-me embora com desgosto

V
Vou partir
Deixo a malta
Hei-de sentir sua falta
Apesar de ir p'ra melhor

VI
Levo comigo
A lembrança
E minha alma não descansa
Deixando um lugar amigo

VII
Quero cantar
Mas sufoca-me a emoção
Sinto a guitarra a chorar
A par do meu coração

VIII
Estou já à beira
Do render da minha guarda
E embora queira e não queira
Vou abandonar a farda

 

Este fado foi cantado e dedicado pelo fadista ao seu público de sempre, os camaradas, na noite da
sua despedida do Niassa. Toda a sua garra de artista está posta neste cantar em que o significado
do verso traduz perfeitamente o seu estado de espírito.
Ao deixarem o Niassa, no momento do render da guarda, muitos certamente se sentiam assim.

 

"FADO DO TURRA"

I
Se de mim nada consegues
Não sei porque me persegues
Constantemente no mato!
Sabes bem que sou ladino,
Que tenho um andar muito fino,
E me escpo como um rato!

II
Lá porque és branco e pedante,
Pretendes ser arrogante,
Por capricho e altivez!
Eu que tenho sido pobre,
Mas que tenho a alma nobre
TalveZ te lixe de vez!

III
Como ando sempre alerta,
Tua arma não me acerta,
Nem me deixa atrapalhado!
E assim num breve instante,
Por mais que andes vigilante,
Tu serás sempre emboscado!

IV
Por isso toma cuidado!
E não me venhas com o teu fado
Dizer que branco é melhor.
Eu já muito codilhado
Estou sempre desconfiado,
E irás desta p'ra pior.

 

Outro fado de humor, em que o autor põe o "turra" a falar.


setstats1"FADO DO MILICIANO"

I
Ser miliciano foi meu sonho
Mas não foi esse o meu fado
Deus deu-me outra fantasia
A de entrar para a Academia
E de ser oficial do quadro

II
Abandonei os civis
Ai deixei a honestidade
Passei a ser calaceiro
Sabujo do mundo inteiro
Deixei de falar verdade

III
Hei-de ir p'ró Estado Maior
Cagar postas de pescada
Dedicar-me àquele estudo
Eles é que sabem tudo
Os outros não sabem nada

IV
Não chorem pelo meu fado
E de mim não digam mal
Se eu aldrabar um bocado
Se eu aldrabar um bocado
Ainda chego a General
(E não é preciso ser muito...)

Versão do Exército para Fado da Marinha (ser "RN" - Reserva Naval - Foi meu sonho - Ainda chego a Almirante).
Humor refinado contra Oficiais do Quadro/Meninos da Academia. Contraste entre os Oficiais sofredores e os Oficiais "Cunhados"...


"FADO DO DESTACAMENTO VETERANO"



Já fiz 20 ou já fiz 30,
Fiz 40 operações
Sem falhar ou sem que minta
Palmilhei mato aos montões
D'engolir tantas rações
Eu d'entre em pouco rebento!
passei noites ao relento,
Sem dormir um só momento


Oh! turra!
Vai-te embora,
Ai de mim que estou tão cansado!
Meu corpo já está todo escavacado!
Passar a vida assim a emboscar,
Nomadizar e palmilhar,
Isto é que é frete, isto é que é fado!
Tem pena e pensa em mim
Que é p'ra meu bem! Deixa-te capturar,
Que é p'ra Guerra s'acabar.


Não posso mais da "carcassa"
Sinto tudo do avesso
Desde que vim p'ró Niassa
Nem conserto eu já mereço!
Quando chegar à terrinha,
Não sei se vou inteiro!
Que raio desta idéia a minha,
De ter dado em fuzileiro.




Este fado é uma paródia sobre a vida dura e incómoda que um Destacamento de Fuzileiros suportava durante dois anos! Tudo nele se compreende e não necessita de explicação.

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outros textos

 

“Para a mente amputada, não há qualquer tipo de prótese”

 

 

 

 

 

EPISÓDIOS

 

 

 

 

A vivência. As experiências. Os sentimentos. As histórias que cada um guarda e não esquece.
Os testemunhos dos homens que fizeram parte da Companhia de Artilharia 2718.

 

 

 

 

 

Aniversários

 

3 de Novembro de 1971. Quatro e meia da tarde.
A noite aproximava-se. No dia seguinte havia saída para mais uma operação.
Cumprindo os procedimentos já tornados rotina, o alferes acabara de reunir com os homens do seu grupo de combate para preparar a operação - conhecimento da natureza da operação e do local do objectivo, detalhes sobre a missão a cumprir, escolha e revista do equipamento a utilizar, definição do papel a desempenhar por cada equipa.
O Carlos Silva aproximou-se.
- Meu alferes - exclamou com o sorriso matreiro que habitualmente sobressaía da sua face quase sem barba - fui buscar umas grades de cerveja à cantina. Não se esqueça de as ir pagar.
- Grades de cerveja?! Para quê?
- Então já se esqueceu que faz hoje anos? O meu alferes oferece a cerveja, que nós já estamos a preparar os frangos de churrasco para a tainada. Temos que comemorar enquanto cá estamos!
Ficou surpreendido. Essa coisa de fazer anos parecia não ter sentido naquelas paragens e naquelas circunstâncias. Comemorar aniversários era um acto relegado ao esquecimento, no meio das angústias do dia a dia, do premente desejo que o tempo passasse depressa, muito depressa que a guerra não era flor que se cheirasse e entretanto já se tinham passado dezoito meses de comissão. Tanto tempo!
- Faço anos, pois é, faço 24 anos. Ei Carlos, estamos a ficar velhos, hem?
- Pois é meu alferes, aqui envelhecemos num instante. É melhor nem falar nisso.

Foi um jantar de jovens, jovens feitos homens à força, jovens que não tiveram tempo para serem jovens, jovens feitos homens para matar, sem tempo nem espaço para pensarem o seu futuro, sem outra liberdade que não a de tentarem cumprir o seu destino imediato, programado por outros, evitando o perigo para regressarem a casa em condições de recomeçar.


4 horas da manhã. É tempo de sair para a operação.
7 horas. Para o alferes e mais quatro homens do seu grupo não houve tempo para pensar o futuro. Bombas colocadas no seu percurso e comandadas à distância, cercearam-lhes esse direito.
O alferes lembrou-se do livro de António Lobo Antunes - "Caro dr. Salazar, se você estivesse aqui e agora, enfiava-lhe uma granada sem cavilha pelo cú acima!"
No desespero que se seguiu tentou encontrar antídoto para o sofrimento. Do mal o menos, pensou! Acabou-se a guerra, vou para casa. Acabou-se o martírio, acabou-se o medo constante, acabou-se a falta de tempo para escolher o tempo de ter medo!
Ah gerações de 60/70, que contradição!


3 de Novembro. 3 de Novembro de todos os anos. O alferes é obrigado a lembrar dois episódios da mesma data!

 

JFCF

 

 

 

Poesia
Texto de Cândido Lopes, escrito no Sagal em Novembro de 1970

 

”Eu”


Eu, que vou por caminhos na selva traiçoeira,
E que enfrento com igual destemor
A morte, as lágrimas e a dor,
Com uma coragem pura e verdadeira.


Eu, que de arma aperrada,
Longas horas espero na picada ardente,
E quando as forças me abandonam bruscamente,
Sei estar alerta pela madrugada.


Eu, que sei dar valor ao meu sacrifício ingente,
Que sei interpretar os meus ideais,
E daria se me pedissem muito mais,
Mais do que o meu amor consente.


Eu, que de farda rota e de olhar cansado,
Busco pelas matas densas o inimigo implacável,
Que sei quanto vale o meu esforço inigualável,
E das razões gloriosas do meu passado.


Eu, para quem a morte é o galardão,
Dos meus feitos imortais, do meu querer,
Que sei sorrir para não desfalecer,
E para quem o mais desgraçado é irmão.


Eu, soldado,
Num último esforço afirmo ao mundo inteiro,
Que o meu ardor é firme e verdadeiro.

Sagal
Dezembro/1970

 

 

 

Carta a um soldado
Texto de Américo Henriques, escrito no Sagal em Dezembro de 1970

 

Está quase a terminar o Natal. Na casa silenciosa, só soa agora o tic-tac do enorme relógio do hall.
Através das janelas embaciadas pelo calor, vêm-se as árvores vergadas ao peso da neve. Estamos sózinhos agora ... sós com os nossos pensamentos e com a recordação de um Natal passado sem a tua presença.
Quando te foste embora, levaste um pedaço do nosso coração.
Nessa altura julgávamos não poder suportar uma dôr tão grande e não voltar a ter a alegria do Natal, quando nesta casa reina a solidão.
Foi a primeira celebração da natividade sem a tua companhia, sabendo que à tua volta reina a desgraça e a luta, o ódio e a violência.
Para esquecer tudo isso, discutimos a felicidade de podermos ouvir canções de Natal, em lugar de tiros ou outros ruídos próprios da guerra.
Em vez de fome e morte, falámos da neve, das estrelas e do retorno das próximas colheitas.
Onde te encontras, pessoas há que morrem para que outras possam viver, mas temos que conhecer o mal para apreciarmos o bem.
É preciso conhecer as coisas tristes, para melhor apreciarmos as alegres.
Enquanto tu ouves tiros, nós ouvimos o repicar dos sinos da nossa igreja, mas na vida é preciso acreditar-se em algo superior.
Ocupámos o tempo falando e jogando, e foi assim querido filho, que passámos o Natal, sem a tua desejada presença.
Teremos agido bem, celebrando esta quadra festiva ignorando se a tua situação é calma ou se andas em perigo de vida?

Beijos dos teus Pais

 

 

 

 

Os ignorados da História
Publicado em Junho de 1971 no "Novo Rumo", jornal de caserna da CART 2718

 

O "Mouraria", um rapaz ignorado e que não ficará na História, um homem que ninguém conhece, um cidadão soldado de Portugal num momento difícil, um rapaz cuja educação, na infância, não fora das mais eficientes, é um entre os milhares de rapazes que, nas matas africanas, adquirem uma nova família. Para além das fileiras, após a desmobilização, não mais essas famílias deixarão de existir.
Batem-se nas penosas picadas do norte de Moçambique, nos trilhos sem fim das "Terras do Fim do Mundo" ou nas bolanhas da Guiné, tentando chegar, chegar não se sabe bem onde, para resolver não se sabe bem o quê. Muitos deles sucumbem inexoravelmente ou ficam mutilados.
E assim, anos volvidos, aquele rapaz cuja formação não é brilhante, que após as fileiras não se sabe bem o que faz - o "Mouraria", de súbito, sem contar, encontra o "seu alferes" quase cego.
Uma mina, algures nos confins africanos, roubara a luz ao chefe de uma das muitas "famílias" nascidas naqueles anos de tragédia.
O ex-soldado fica perplexo, confuso, não sabe o que dizer. Descreve algumas cenas de uma vida um pouco nebulosa com imagens errando por essa Europa turbulenta. Recordam tempos passados.
"Este rapaz, coitado, é uma vítima de uma infância triste, tristemente obscura" - pensa o "seu alferes". E separam-se com uma promessa um tanto vaga de "até breve".
Mas quando o Natal se aproxima, quando o frio intenso se faz sentir no coração e nos corpos dos homens sem eira nem beira, o "Mouraria" telefona oa seu "familiar", ao seu "chefe da família africana". O encontro dá-se pouco depois, entre os dois jovens já veteranos.
"Meu alferes...eu cá vinha oferecer-lhe uma das minhas vistas. O meu alferes, aquele homem que eu conheci em África, que nos comandou durante a guerra, não pode ficar cego."

 

 

setstats1

 

http://www.geocities.com/cart2718/index1.html

 

ESTA PÁGINA PRETENDE CONTER VERSOS, PIADAS, CONTOS, HISTÓRIAS, DESENHOS, ETC., RELACIONADOS COM A VIDA MILITAR DOS QUE PERTENCERAM À NOSSA COMPANHIA

 

DO “1ºCABO” QUARESMA

 

O HINO DA COMPANHIA

 

                                 I

Aqui vai a Companhia Independente

Ensinada e mobilizada no dezassete

Disposta p’ra tudo o que tiver na frente

E com o número vinte e seis setenta e sete

 

                                 II

Vamos todos de alma e coração

Como nos já foi ensinado na escola

A defender cada um sua Nação

E a nossa é a província de Angola

 

                              Coro

Vitória será p’ra nós

Com a vontade e com o esforço de todos nós

Vitória é um dever

Em que a nossa Companhia tem que vencer

E assim todos com vontade

Temos esperança de alcançar sua glória

Para que no fim a mocidade

Possa dizer que com esforço cantou vitória

 

                                 III

A vitória será nossa bem o digo

Embora alguns nos põem defeitos

Mas para um português nunca há perigo

Antes morrer livres do que em paz sujeitos

 

                                 IV

Temos fé que a madrinha de Portugal

Nos vai acompanhar e livrar do perigo

E nos levar à nossa Terra Natal

Todos no fim com nosso dever cumprido

 

 

 

DO “ALFERES” ESTÁCIO

 

                                                                        O FADO DA COMPANHIA

 

A nossa Companhia foi a C.Caç. 2677, Companhia Independente, formada no antigo BII 17, de Angra do Heroísmo, nos Açores.

Após o cumprimento dos períodos de recruta e especialidade, viemos para o Continente tendo ficado aquartelados em Tomar e no Campo Militar de Santa Margarida. Finalmente, em Março de 1970, embarcámos no navio "Pátria" rumo a Angola onde chegámos nos primeiros dias de Abril. Depois de uma noite de chuva intensa no Campo Militar do Grafanil (Luanda), arrancamos para a zona de Malange, tendo estado aquartelados nas povoações de Luquembo e Sautar. Ao fim de 18 meses de comissão viríamos a ser transferidos para o Norte de Angola, mais precisamente, para Bessa Monteiro. Não obstante a flagelação sofrida em Sautar, dos três locais onde estivemos, o mais temido, em termos de um eventual confronto com a guerrilha, foi, sem dúvida, Bessa Monteiro. Na zona actuava um antigo Cipaio, de seu nome Pedro, o qual se tornou conhecido pelo alcunha de "Afamado". Era pois o Afamado Pedro.

O regresso à Metrópole ocorreu em Abril de 1972.

No Natal de 71, compus em Bessa Monteiro o poema que se segue. Adaptei-o à música de um fado e "baptizei-o" de Fado da Companhia.

 

 

Fado da Companhia

 

Mês a mês se arrasta o tempo

E a malta em sofrimento

Vê a comissão passar,

Com a esperanças acalentada

E jamais abandonada

Que um dia há-de acabar.

 

Para azar a Metrópole chegou,

Onde a malta aguentou

Três meses sem embarcar,

Mas, por fim, chegou o dia

Em que a nossa Companhia

Viu o tempo a contar

 

De Luanda, houve o cheiro

Nesse dia aguaceiro

Mas tivemos que abalar,

E antes de Bessa Monteiro

Luquembo veio primeiro

E depois veio Sautar.

 

Tenho uma cunha metida

E uma fé incontida

Qu' isto está mesmo a acabar,

Pois respeitando a velhice

O"Pedro Afamado" disse

Que podemos regressar.

 

 

 

LETRAS VERMELHAS

 

         Mobilizado para Angola cheguei a Luanda a 26 de Março de 1970 e, após uma noite em claro passada no Campo Militar do Grafanil, arrancámos para o Luquembo com passagem pela minha querida cidade de Malange.

         No dia 10 de Junho de 1970 participei no tradicional almoço anual de Regentes Agrícolas, em que os residentes na Região de Malange se resolveram reunir na Pousada das Quedas do Duque de Bragança. Durante a refeição tive o grato privilégio de contemplar aquela beleza da Natureza que era a extensa massa de água formando uma autêntica cortina que, cá em baixo e contra a rocha, se desprendia com fragor. Como aquele tipo de confraternizações eram sempre muito bem avinhadas, senti-me, no final do repasto, um tanto ou quanto zonzo pelo que por entre umas espessas e inebriantes nuvens etílicas, resolvi ir dormitar para o pequeno quarto que tinha alugado na Pensão Rex, em Malange.

            Aí pelas sete da tarde dois colegas foram-me desencaminhar para irmos à matiné dançante que havia no Clube Ferroviário. Chegados lá inquiri quanto custava a entrada, tendo sido informado por um dos dois rapazes que estavam encarregues da bilheteira:

         - Sócios e militares 20$00. Não sócios 40$00.

         Como na altura estivesse a cumprir o serviço militar entreguei 20$00, ao que um dos moços me pediu que apresentasse o cartão de identificação militar, pois não me conhecia e eu trajava à civil. Assim fiz, de imediato, e depois de um deles ter examinado demoradamente o cartão e comprovado pela fotografia que o mesmo me pertencia, disse-me que teria que pagar mais, pois era Sargento. Admirado com tão repentina despromoção de Oficial a Sargento apenas deixei escapar:

         - Quem eu?...

         E prosseguiu o rapazote:

         - Sim o boné é de Sargento.

         O colega do moço que me tinha colocado a questão, fez-lhe ver que ele se enganara e chamou-o à atenção:

         - Não. São só 20$00. Não vês que, letras vermelhas, é Cabo.

         Ainda fiquei mais deprimido, pela despromoção agravada, mas antes que pudesse responder, já me tinham recolhido os vinte escudinhos e mandado entrar, sob o olhar impaciente das pessoas que entretanto tinham vindo a engrossar a bicha.

         Lá fui para o baile todo divertido e com uma forte vontade de me rir. É que eu era Oficial e, como tal, na fotografia do cartão de identificação militar aparecia com um boné, relativamente, parecido com o dos Sargentos. Porém, o que as tais letras vermelhas diziam e, a que o segundo moço aludira era nada mais nada menos, “Oficial do Exército”. A confusão do garoto foi tamanha que nem leu o que estava escrito no cartão e associaram a cor da expressão à das divisas dos Cabos, que como se sabe, são, efectivamente, vermelhas.

 

 

DO “1º CABO” ANTÓNIO MANUEL DA SILVA(Açores)

 

 

MISSÃO CUMPRIDA

 

23 jovens regressam da “frente” angolana



 

À entrada da doca o “Espírito Santo” cumprimentou a terra.

Alcandorados sobre a estrutura do esbelto iate muitos vultos como que a admirar a paisagem que de seus olhos jamais saíra nestes muito prolongados meses.

No cais alvoroça-se enorme multidão, em que predomina o elemento feminino.

Já os braços se elevam em primeiros cumprimentos aos familiares, enquanto o iate se aproxima na costumeira meia volta.

Agora distinguem-se bem.

Com o acenar frenético do mar e da terra assomam as primeiras lágrimas.

O pranto chega, mesmo, a irromper abundantemente, dominador, nesta hora de verdade. Chora-se de alegria, de comoção.

Entretanto de bordo, ainda mesmo antes de o “Espírito Santo” atracar, um dos “bravos” aconselha calma para alguém que, em terra, é luz, razão do seu viver. E junta o gesto à palavra, dentes fincados, lágrimas escondidas no mais recôndito da alma.

Mas foi no cais nos prolongados, intermináveis abraços e beijos, no prodigalizar de carícias nos rostos feminis ou nas tisnadas faces dos heróis que se exteriorizou, se extravasou como, em incontida torrente, toda a expansão do sentimento, o acumular de saudades...

23 valentes da Terra Faialense regressavam de Angola. Dois grandes anos se haviam “vivido” no norte.

E ali, no cais, eram os seus familiares e amigos quem lhes estava a pagar o tributo da sua abnegação, do seu heroísmo...

 

(texto extraído do jornal do Faial , da época, “O Telégrafo”, relatando o regresso àquela Ilha do pessoal da nossa Companhia, em 27 de Abril de 1972. A foto foi cedida pelo António Manuel).

 

 

DO “FURRIEL” ANTÓNIO JOSÉ DA COSTA RESENDE

 

 

AÍ VEM ELA !!!

 

É o grito que, por momentos, ecoa no quartel ao mesmo tempo que se começa a ouvir lá longe, o ruído do motor, o qual, aos nossos ouvidos, soa como uma música suave, maravilhosa.

Sim! É “ELA”, a avioneta que traz o correio. Durante algum tempo, Sautar corre de um lado para o outro. Ouve-se o roncar dos “burros de mato” em direcção à pista e, pouco depois, eis que chega “o saco”.

Há aglomeração junto ao quartel velho; o momento é de expectativa. Ninguém quer “LERPAR” com o correio. Há até um certo nervosismo mal disfarçado.

Enfim, chega o grande momento e o correio é distribuído.

... Depois SAUTAR fica silenciosa, cada qual escolhe um sitio sossegado onde possa ler sofregamente, as notícias daqueles que são queridos.

A chama da saudade aviva-se. E há pensamentos distantes. Recordações que parecem imensamente longínquas ...

Há sorrisos bailando nos lábios, por esta ou aquela frase mais agradável.

Durante alguns minutos sentimo-nos embevecidos por uma certa solidão. Creio ser válido este sentimento de nos sentirmos sós. Mas logo tudo regressa à normalidade.

Os dias passam e todos se embrenham nas lides do dia a dia do quartel até que, de novo, o grito ecoe pelos ares:

 

“AÍ VEM ELA”!!! “AÍ VEM ELA”!!!

 

E com “ELA” a avioneta que traz o correio renasce a esperança e a alegria de receber uma carta.

 

“AÍ VEM ELA”

 

(texto produzido pelo António Resende e colocado no Jornal de Parede da Companhia, aliás responsabilidade que lhe fora confiada).

 

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http://www.terravista.pt/Baiagatas/1924/