“- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo
dizer-vos que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não
foi? Então sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.
- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas
disciplinas, aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho
culpa que me tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não
conheço, nem me interessa. Podia estudar para vir aqui desbobinar, tipo papagaio,
mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.
Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou
impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo,
simpático.”
(...)
“- Repito – eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar,
nem quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria. Mas, atenção, vocês
é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final do ano, vão ter que
fazer exame para concluírem o vosso 7º ano e puderem entrar na Faculdade. Isso,
vocês têm que fazer. Estudar. Para serem homens e mulheres cultos para puderem
combater, cada um onde estiver, esta ditadura infame que está a destruir a
vossa pátria e a dos vossos filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que
lutar por um novo país.
Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta
estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho
dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão
ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde
existem regimes diferentes deste, que nos oprime, países onde há liberdade de
pensamento e de expressão, educação para todos, cuidados de saúde que não são
apenas para os privilegiados, enfim, outras coisas que a seu tempo vos
ensinarei. Percebem? Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela
nossa cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros,
mas eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do
conhecimento, da cultura e da verdade. Vou ensinar-lhes que, além fronteiras,
há outros mundos e outras hipóteses de vida, que não se configuram a esta
ditadura de miséria social e cultural”. Hélia Carvalho
Cerca de dois meses depois, Zeca Afonso foi preso.
Em 1983, muito doente convidou Rui
Pato (já médico) afastado das andanças dos acompanhamentos, para tocar consigo
no concerto do Coliseu de Lisboa. Perguntou a Rui Pato o que queria tocar. Este
respondeu: a “Canção de embalar”. Zeca responde que não sabe se a consegue
cantar.
https://www.youtube.com/watch?v=l68SAEpesvI
À quinta música do alinhamento, do Concerto do Coliseu de Lisboa, “Balada de Outono”', José Afonso emociona-se, mas persiste em cantar: “Águas das fontes calai / ó ribeiras
chorai / que eu não volto a cantar”.
Claro que volta! Está no nosso
https://www.esquerda.net/dossier/zeca-afonso-suas-aulas-eram-absolutamente-revolucionarias/47134
https://radiocomercial.iol.pt/noticias/133490/despedida-de-zeca-afonso-no-coliseu-de-lisboa-foi-ha-40-anos