sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Diário de um professor

        
      Os comportamentos de desatenção, turbulência têm necessariamente que ser pensados sem leviandades.


      O Diário do Professor Arnaldo - A fome nas escolas
       Publicado em 19 de Novembro de 2010 por Arnaldo Antunes


       Ontem, uma mãe lavada em lágrimas veio ter comigo à porta da
       escola. Que não tinha um tostão em casa, ela e o marido estão
       desempregados e, até ao fim do mês, tem 2 litros de leite e meia
       dúzia de batatas para dar aos dois filhos.


       Acontece que o mais velho é meu aluno. Anda no 7.º ano, tem 12
       anos mas, pela estrutura física, dir-se-ia que não tem mais de
       10. Como é óbvio, fiquei chocado. Ainda lhe disse que não sou o
       Director de Turma do miúdo e que não podia fazer nada, a não ser
       alertar quem de direito, mas ela também não queria nada a não
       ser desabafar.


       De vez em quando, dão-lhe dois ou três pães na padaria lá da
       beira, que ela distribui conforme pode para que os miúdos não
       vão de estômago vazio para a escola. Quando está completamente
       desesperada, como nos últimos dias, ganha coragem e recorre à
       instituição daqui da vila - oferecem refeições quentes aos mais
       necessitados. De resto, não conta a ninguém a situação em que
       vive, nem mesmo aos vizinhos, porque tem vergonha. Se existe
       pobreza envergonhada, aqui está ela em toda a sua plenitude..


       Sabe que pode contar com a escola. Os miúdos têm ambos Escalão
       A, porque o desemprego já se prolonga há mais de um ano (quem
       quer duas pessoas com 45 anos de idade e habilitações ao nível
       da 4ª classe?). Dão-lhes o pequeno-almoço na escola e dão-lhes o
       almoço e o lanche.

       O pior é à noite e sobretudo ao fim-de-semana. Quantas vezes
       aquelas duas crianças foram para a cama com meio copo de leite
       no estômago, misturado com o sal das suas lágrimas...


       Sem saber o que dizer, segureia-a pela mão e meti-lhe 10 euros
       no bolso. Começou por recusar, mas aceitou emocionada.
       Despediu-se a chorar, dizendo que tinha vindo ter comigo apenas
       por causa da mensagem que eu enviara na caderneta.

       Onde eu dizia, de forma dura, que «o seu educando não está
       minimamente concentrado nas aulas e, não raras vezes, deita a
       cabeça no tampo da mesma como se estivesse a dormir».


       Aí, já não respondi. Senti-me culpado. Muito culpado por nunca
       ter reparado nesta situação dramática. Mas com 8 turmas e quase
       200 alunos, como podia ter reparado?


       É este o Portugal de sucesso dos nossos governantes. É este o
       Portugal dos nossos filhos.

Obrigada à Júlia a sua divulgação.