Notável discurso de Lídia Jorge no dia de Portugal e das Comunidades Portuguesas
«Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua história,
contemplando memórias de batalhas, ações de independência, encontros
civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos
cidadãos e promovem o orgulho patriótico.
Mas, em Portugal, é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso
momento cívico de unidade mais relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade e,
muitas vezes, é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia,
mas sim do seu oposto.
Há a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa
que acabou por ser adotada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um
povo e que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de
um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa
peregrinação prometeica sobre a terra.
A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava
em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da
proximidade que os portugueses que se encontram longe mantêm com a sua cultura
de origem.
O país retribui-lhes, reconhecendo, desde há muito, que as comunidades
portuguesas são o corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em
primeiro lugar, porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século
passado, foi cidade anfitriã em 1996.
Passados 29 anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre,
próspera.
O que mudou e o que justifica que, de novo, tenha sido escolhida para ser
palco das celebrações foi a nova consciência de que Lagos passou a representar
um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao
longo dos séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para a África e lugar do comércio
prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres.
A escassos 40 quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam
historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação.
A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos 90 permite agora uma
divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores
estão a realizar neste espaço geográfico designado por Terras do Infante.
Era a altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade vencedora e
de apoiar estas celebrações de importância ou de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que, este ano, a celebração deste dia seja
particular. Desde há dois anos que estamos a invocar o nascimento de Camões,
ocorrido há 500 anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim
tenha sido, mas vale a pena refletir sobre o facto, pois, tal como não sabemos
como decorreu a sua infância, nem a sua formação, também desconhecemos o local
e o dia em que o poeta nasceu.
Para sermos justos sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um
certo maestro célebre disse de Beethoven: Um dia Camões nasceu e nunca mais
morreu. Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como, passados cinco séculos, tem sido revisitado ao
longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os
vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto
a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta
maior.
Novos autores têm surgido, atualizando a exegese sobre os seus poemas e o
conhecimento acumulado em torno da vida de Camões.
O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel
decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um
pensamento novo que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa moderna que
hoje usamos.
Demonstrou como a língua portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou
como uma dádiva que devemos ao grande cantor do Oceano, como lhe chamou
Baltasar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente, profusamente
documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os
testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que
correm sobre certos passos da sua vida, afinal, não são lendas, são verdades.
O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade
testemunhada. E assim, a mim, não me pareceria errado que os adolescentes
portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índio redigiu na margem de
um exemplar d’Os Lusíadas, presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora
de partir. Escreveu o frade: Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa sem tener
uma sábana com que cobrisse, despues de haver navegado 5.500 léguas per mar.
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sábana, já
depois de morto.
Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou
antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e seu mistério, isso, talvez.
Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de
novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi.
Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa
entrevista que, se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal
teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a
ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões, como se fossem
filos modernos, feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam
vivamente enamorados do seu poeta maior.
Mas se o patrono destas celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do
amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e
teológico, como é em “Sôbolos rios que vão”, e o poeta dos longos versos
enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses
versos, escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a
compreender que os tempos duros que atravessamos têm conformidade com os tempos
em que o próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de
um ciclo e, sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das 1.102 oitavas
que compõem Os Lusíadas, 22 delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se
vivia então.
Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto
género, o paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que
havia resultado da criação do Império e, em sentido oposto, conter a condenação
das práticas que, passados 50 anos, impediam a manutenção desse mesmo Império.
E nesse campo pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica
que o dia de Portugal seja o dia de Camões, expressa corajosas verdades
dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que, entre os séculos XVI e XVII, três dos maiores escritores
europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante 16 anos e, no entanto,
os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que
eram testemunhas.
Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em
convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos e, entre eles, os
mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos
nossos dias: sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, o poder
temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das
maravilhas da história para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o
presente de então? Queixava-se da degradação moral, mencionava “o vil interesse
e sede imiga/Do dinheiro, que a tudo nos obriga”, e evocava, entre os vários
aspetos da degradação, o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham
enfrentado um mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer
cultura. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento, queixava-se
da falta de seriedade intelectual, que resultava depois, na prática, na
degradação dos atos do dia a dia.
Escreve o poeta no final do canto oitavo: “Este deprava às vezes as
ciências,/ Os juízos cegando e as consciências./ Este interpreta mais que
sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a
gente/E mil vezes tiranos torna os Reis”.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram
os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios que
viveram.
Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra, dizia-se
que lutavam entre si pelo domínio do globo terrestre. Ou mais concretamente,
dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a
terra ao pescoço como se fosse um berloque.
Os três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras
enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e
subvertam todas as regras da boa convivência.
Escreveu Shakespeare no ato IV do Rei Lear: “É uma infelicidade da época
que os loucos guiem os cegos”.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de
La Mancha, que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido.
Por seu lado, Camões, no corpo d’Os Lusíadas, não falou da loucura, mas a
vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido
proféticas, em resultado dela, da loucura. O desastre de Alcácer-Quibir,
ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do Canto X. Era a
história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela
literatura.
No entanto, o fim do ciclo, que neste caso aqui interessa, não é mais uma
transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa.
Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a
acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros.
Deslocamo-nos à velocidade dos meteoros e estamos cercados de fios
invisíveis que nos ligam para o espaço.
Mas alguma coisa desse outro fim de século, que se seguiu ao tempo da
Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder
demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã,
ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é
disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse
de um berloque.
E os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de
bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de
seguidores. E os seus ídolos são fantasmas.
É contra isso e por isso que vale a pena que Portugal e as Comunidades
Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono. Por isso mesmo, também vale a
pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais, aconteceram momentos decisivos para o mundo.
No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para
Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O
Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com o achamento de ilhas
e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou
a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura
de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que
se realizou e depois se entornou pela terra inteira e a lenda coloca-o a
meditar em Sagres.
Numa referência um tanto imprecisa, mas que permite a sua evocação, Sophia
escreveu: “Ali vimos a veemência do visível/ o aparecer total exposto inteiro/
e aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ era o verdadeiro”.
Esta ideia de que, na mente do Infante, se processou uma epifania, anda-lhe
associada enquanto mentor de uma equipa mais ou menos informal que teve a
capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou, assim, para a história e para a
mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo.
Mas existe uma outra perspetiva, como é sabido, e hoje em dia o discurso
público que prevalece é, sem dúvida, sobre o pecado dos Descobrimentos e não
sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação coletiva que permitiu estabelecer a ligação por
mar entre os vários continentes e o encontro entre povos obedeceu a uma
estratégia de submissão e rapto, cujo inventário é um dos temas dolorosos de
discussão na atualidade.
É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a
escravatura é um processo de dominação cruel, tão antigo quanto a humanidade.
O que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes
graus de intensidade.
E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo
de escravização longo e doloroso.
Lagos, precisamente, oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos
Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico.
Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de
que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como
polos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo
modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por
outros países europeus até ao final do século XIX.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como, num dia de agosto de
calor tórrido de 1444, desembarcaram aqui 235 indivíduos raptados nas costas da
Mauritânia e como foram repartidos e por quem.
Alguém que, muito prezamos, encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o
seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o
próprio Infante D.Henrique.
Lagos não se furta a expor essa verdade histórica.
Lagos também mostra o local onde depois levas sucessivas iriam ser
mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao
lixo quando morriam sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados
desse monturo de Lagos os restos mortais de 158 indivíduos de etnia Banta.
Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez
por isso estejamos aqui,no dia de hoje.
Aliás, a UNESCO criou a Rota do Escravo e inscreveu Lagos na Rota da
Escravatura, para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os
outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sob os princípios do
amor e sob a lei dos direitos humanos.
Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um
lugar de extermínio moderno o pedido solene: Homens não se matem uns aos
outros.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de agosto de 1444
porque o cronista do infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não
conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como
a chegada e a partilha dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa
página da “Crónica dos Feitos de Guiné” para termos a certeza de que havia quem
não achasse justo semelhante degradação e o dissesse.
Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o
teorizasse.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante de que Sagres é a
metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos
capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a
indiferença.
É uma luta nossa, contemporânea.
Em Lagos, hoje em dia, está presente de outro modo a mensagem do cartoon de
Simon Kneebone, datado de 2014, que tem corrido mundo.
A cena é nossa contemporânea. Passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado
com armas defensivas, no alto da torre, está um tripulante que avista ao longe
uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes.
O tripulante da grande embarcação pergunta: de onde vêm vocês? Da lancha,
apinhada, alguém responde: vimos da terra.
Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais,
marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de
trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.
Consta que em pleno século XVII, 10% da população portuguesa teria origem
africana.
Essa população não nos tinha invadido. Os portugueses os tinham trazido
arrastados até aqui. E nos miscigenámos.
O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da
ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma
soma.
Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e
do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do
senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele
que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria
revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda
a parte.
Agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está
a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda
desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá
ser o dia seguinte.
A pergunta é esta: quando ficarem em causa os fundamentos institucionais,
científicos, éticos, políticos e os pilares de relação de inteligência
homem-máquina, entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres
humanos? O que passará a ser um humano?
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha a poeta sobre
o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima
da perseguição de todas as potestades conjugadas. A sua obra lírica é uma
resposta a esse abandono essencial.
Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o canto I d’Os Lusíadas,
Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos: “Onde pode
acolher-se um fraco humano,/ Onde terá segura a curta vida/ Que não se arme, e
se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da terra tão pequeno”.
Nestes versos, se reconhece o conceito renascentista, o da grande solidão
do ser humano e a sua luta estóica contra, centrada na confiança em si mesmo.
Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa que
facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo nu
de Camões só teve um lençol, o oferecido, a separá-lo da terra. Igual à sorte
do seu corpo, essa sorte não difere daquela que mereceram os corpos dos
escravos aqui em Lagos.
Mas entretanto, no século XIX, o direito à proteção beneficiada pelo Estado
começou a emergir. Criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito
pelos cidadãos. Depois das duas guerras mundiais do século XX, foi redigida e
aprovada a Carta dos Direitos Humanos e, durante algumas décadas, foi tentado
implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que
ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito de representatividade respeitável da figura do Chefe de Estado,
oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das
tragédias clássicas, a que se juntou depois o princípio da exemplaridade
colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais
digno entre os dignos, está a ser subvertida.
A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a
ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.
Um Chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, pôde dizer:
adoro-vos, adoro os pouco instruídos. E os pouco instruídos aplaudiram.
Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia de ser humano? Como proteger
esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, dia de Portugal, de Camões e das comunidades, não será legítimo
perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a
noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à
verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos. Somos pobres e injustos. Mas, ainda
assim, derrubámos uma longuíssima ditadura e terminámos com a opressão que
mantínhamos sobre diversos povos e com eles estabelecemos novas alianças e
criámos uma comunidade de países de língua portuguesa. E fomos capazes de
instaurar uma democracia e aderir a uma união de países livres e prósperos que
desejam a paz.
Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas, perante as
incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino,
porque se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a
certeza de que partilho da sua ideia, de que um ser humano é um ser de
resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito obrigada.»