domingo, 21 de abril de 2013

O regreso do livro único - metas curriculares

     PÚBLICO, DOM 21 ABR 2013   | 55
RICARDO SILVA
O regresso do livro
único de História
“A nossa consciência política é, e não pode
deixar de ser, uma consciência histórica”
Raymond Aron, Dimensions de la
conscience historique, 1961

Pode ler-se, desde a segunda
semana de Abril de 2013, no
sítio electrónico oficial da
Direcção-Geral de Educação,
que foi homologada a versão
final das Metas Curriculares
das disciplinas do 7.º e 8.º ano
de escolaridade. Com este
procedimento administrativo,
o Ministério da Educação
e Ciência (MEC) assume a decisão de
prescrever um conjunto de objectivos
construídos por equipas especializadas no
ensino de diferentes disciplinas para dois
dos três anos curriculares do 3.º ciclo do
ensino básico, deixando de fora, por razões
não explicadas, o 9.º ano.
Segundo o MEC, as Metas Curriculares
devem ser entendidas como instrumentos
que defi nem, “de forma consistente, os
conhecimentos e as capacidades essenciais
que os alunos devem adquirir, nos
diferentes anos de escolaridade ou ciclos e
nos conteúdos dos respectivos programas
curriculares” (Despacho n.º 5306/2012, de
2 de Abril de 2012).
As Metas Curriculares definidas para os
7.º e 8.º anos de escolaridade tomaram
por referência os programas disciplinares
em vigor, os quais foram formulados em
quadros de inteligibilidade e contextos
sócio-educativos diferenciados. Assim,
por exemplo, as Metas Curriculares
de Português referem-se ao programa
adoptado em 2009, as de Matemática ao
programa de 2007, as de Geografi a, Ciências
Naturais, Físico-Química e Educação Física
aos programas de 2001 e as das demais
disciplinas aos programas de 1991.
Se juntarmos a omissão do 9.º ano de
escolaridade ao desalinhamento temporal
e conceptual dos programas em vigor
em 2013, começa a desenhar-se a falta de
uma visão global do currículo (entendase,
as aprendizagens, conhecimentos e
capacidades que gerações de alunos irão
desenvolver ao longo dos próximos anos)
na medida política das Metas Curriculares
adoptada pelo MEC e, consequentemente,
o seu enviesamento metodológico, social e
educativo.
No caso da disciplina de História, as
Metas Curriculares para o 7.º e 8.º ano do
ensino básico recentemente homologadas
tomam por referência o programa adoptado
em 1991. Para a execução parcial de dois
terços das cinco fi nalidades e 41 objectivos
gerais do programa do 7.º e 8.º anos de
1991 e da totalidade das suas oito unidades,
22 subunidades, 53 temas e 176 conceitosnoções
programáticos, as Metas Curriculares
de História (MCH) prescrevem um conjunto
de 62 objectivos e 310 descritores (leia-se,
em conjunto, 372 objectivos operacionais de
conteúdo) do domínio cognitivo.
Os professores de História serão, deste
modo, compelidos, a partir do ano lectivo
de 2014/2015, a executar 372 objectivos
cognitivos no exercício da sua actividade
profi ssional nos anos de escolaridade
referidos. Isto equivale a dizer que
professores e alunos de História têm de
executar cada um dos micro-objectivos
determinados centralmente pelo MEC
à média horária de 17 minutos, o que
dará cerca de 5,3 objectivos por cada
aula útil (descontadas que foram as aulas
dedicadas às actividades avaliativas e não
contabilizando as eventuais saídas de
estudo) de 90,0 minutos. Resultado médio
este que não considera o trabalho visado
pelos objectivos gerais do domínio das
atitudes e valores (cerca de um terço dos
objectivos gerais) previstos no programa
ofi cial de História em vigor.
Este cenário do trabalho escolar
quotidiano das salas de aula de História
parece mais consentâneo com a
caracterização do funcionamento de um
regime militar, centralista, de comando
hierárquico, fechado à diversidade
(historiográfica e educativa), receoso
da inovação e desconfi ado da
competênciatécnico-profissional
dos seus trabalhadores mais
especializados (professores).
Porém, ele é quantitativamente
objectivo e denota, a um tempo, o
embotamento das opções
metodológicas em matéria de educação
histórica plasmadas pelas Metas
Curriculares e uma determinada visão
sobre a missão da disciplina de História
no terceiro ciclo do ensino básico.
O embotamento metodológico
deriva de uma visão tecnológico produtivista
de currículo, a qual é confirmada
pelas seguintes características:
a) as MCH são orientadas para
Professores e alunos de
História têm de executar cada
um dos microobjectivos
determinados centralmente
pelo MEC à média horária
de 17 minutos, o que dará
cerca de 5,3 objectivos por
cada aula útil a concepção dos conteúdos como
produtos formais de aprendizagem, e não,
concomitantemente, como promotores de
processos e estratégias cognitivas (métodos
e capacidades) próprias do conhecimento
histórico, os quais são afi rmados e visados
pelo programa curricular em vigor; b) as
MCH são concebidas como conteúdos
“que devem ser ensinados aos alunos”,
colocando-se, segundo esta perspectiva,
todo o seu enfoque na predição e controlo
dos desempenhos/performances dos
alunos em sala de aula; c) a análise técnica
da formulação das 372 MCH revela que
a esmagadora maioria (acima dos 75%)
dos desempenhos requeridos aos alunos
é dominada por técnicas cognitivas de
memorização e de compreensão muito
básica, menorizando, dessa forma, as
técnicas cognitivas superiores como as da
análise, crítica, investigação, comunicação
e síntese, entre outras, requeridas pelo
próprio programa de História em vigor.
Ao especifi carem um vasto número de
micro-objectivos (de sala de aula) a partir
do centro de decisão política (MEC), as
MCH representam, por um lado, uma
subversão dos princípios organizativos
do programa de História de 1991, que
dizem observar e respeitar, e, por outro, a
mudança da cultura de desenvolvimento e
gestão curricular implementada no período
democrático em Portugal. Se se considerar
que o desenvolvimento curricular é um
processo contínuo e interactivo, que
implica todos os decisores educativos
(políticos, especialistas, técnicos, escolas
e professores, entre outros), facilmente se
compreende que o modelo adoptado pelas
MCH encerrou esse processo no nível de
decisão do MEC e impõe uma visão única
de educação histórica às estruturas técnica,
escolar e docente por via administrativa.
Este modelo de desenvolvimento
curricular nunca foi defendido e
operacionalizado pelas reformas
curriculares substantivas de 1989-1991 e
Debate Metas curriculares
Luís Grosso Correia
de 2001. A única vez que foi publicado
um documento com uma aproximada
orientação tecnológico-burocrático administrativa
do ensino da História, ele
declarava, unívoca e formalmente, que não
tinha carácter normativo e que representava
um conjunto de sugestões metodológicas
para a operacionalização do processo de
ensino-aprendizagem, tomando o programa
ofi cial de 1991 por referência.
As MCH terão por efeito imediato o
constrangimento da acção dos docentes,
quer em contexto de escola quer de
sala de aula, no desenvolvimento e
gestão curricular, exponenciando os
(previsíveis) desvios entre o currículo
ofi cial e o currículo real. Neste quadro,
prevê-se que a implementação acrítica
das MCH implicará os seguintes efeitos: a)
a transformação do processo de ensino aprendizagem
de História numa actividade
técnica de concepção única (do ponto de
vista epistemológico, educativo e social),
pronta a servir de acordo com o algoritmo
pré-estabelecido centralmente, segundo
uma lógica de aplicação administrativa topdown;
b) a transfiguração dos professores
em front-desk bureaucrats de História ao
serviço de um qualquer estabelecimento
de ensino do sistema educativo português;
c) a concepção do aluno como uma
pessoa replicadora, por memorização,
de conteúdos históricos finalizados por
outros, alheia ao aprofundamento de um
pensamento autónomo, fundamentado,
crítico e criativo em matéria de
conhecimento histórico e de percepção da
realidade social à sua volta.
A opção metodológica adoptada na
construção e homologação das MCH encerra
ainda outros riscos a ter em séria conta,
dos quais destaco um só: a possibilidade
da captura do campo educativo por
visões particulares da História. Este risco,
atentatório do regime democrático, poderá
tornar-se mais explícito quando o mesmo
esquema metodológico das MCH ora
homologadas for aplicado aos conteúdos
programáticos do 9.º ano de escolaridade,
os quais recobrem o período histórico dos
séculos XX e XXI.
Os enviesamentos metodológicos
em matéria curricular e os riscos sócioeducativos
que aqui se apresentam a partir
da análise das MCH têm algum paralelo
com uma praxis educativa reconhecida em
Portugal desde a década de 1930. Começou
pelos livros de leitura do ensino primário,
foi aplicada no ensino secundário, com
particular incidência na disciplina de
História, encontrou no conceito de livro
único a sua tecnologia mais acabada e
durou até Abril de há 39 anos.
Professor universitário, Departamento
de História e de Estudos Políticos e
Internacionais, Faculdade de Letras da

Universidade do Porto.