segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O que é amar um país. Reflexão sobre a utopia

JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA,  O QUE É AMAR UM PAÍS -  O PODER DA ESPERANÇA, Quetzal Editores, 2020.



DAR MENOS UM PASSO



Depois de ter lido “O que é amar um pais de José Tolentino de Mendonça, algumas questões persistiram na minha mente, face às certeza, às vezes, de incentivo à calma, securizantes, ou  estagnadoras, propaladas pelos meios de comunicação social ou pelas nossas comunidades de amigos.

No entanto, o atual tempo e aqui teremos que pensar como entendemos este conceito, no sentido grego de Cronos que devora os próprios filhos, logo que nos retira violentamente ao passado e nos projeta, da mesma forma, para o futuro, ou no sentido de  Kairós, o tempo oportuno. Será que nos é proporcionado descobrir o “instante iminente, lugar da própria revelação”(Mendonça, 2020,110)? Saberemos descobrir, na agressividade, isolamento e indolência de alguns, o medo do desconhecido e ultrapassar essa perceção indo ao encontro do outro, reencontrando-nos, também, bichos do mundo tão pequenos?

Escolheremos seguir em frente na veloz tecnologia que não olha a estragos ou  afirmar-nos-emos pela capacidade de repensar corajosamente instrumentos e consequências?

Desta forma várias perguntas  podem ser refletidas.

Será que o presente pandémico será acelerador de assimetrias ou implementará a proximidade coletiva?

Quando tudo se “normalizar”, veremos o outro como rival ou abraçá-lo-emos como aliado indispensável?

O mundo poderá viver uma nova etapa de globalização consciente dos riscos do abuso ambiental, da precarização do trabalho e da exclusão, e tornar-se mais justo?

A terra poderá deixar de ser um objeto que satisfaz todos os nossos interesses desenfreados e emergir a ideia que terá que haver cuidados capazes de regular o equilíbrio entre todos os seres vivos?

Será que entenderemos, como já referiu o Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si que “o grito da terra e o grito dos pobres” está interligado e faz parte da mesma ambição desmedida de uns poucos que dominam todo o planeta em seu próprio proveito?

Repensaremos  o conceito que nos remetia para a “app de food delivery” (Mendonça. 2020.p.84) e reencontraremos o sabor das refeições lentas e cozinhadas em comunidade caseira?

A União Europeia conseguirá repensar-se e reerguer os seus ideais?

A nossa convivência e organização do espaço habitado poderá ser fundada numa humanização das relações?

Saberemos cuidar dos traumas gerados pelo trabalho e risco excessivo de alguns profissionais?

Haverá uma visão mais harmoniosa da vida material e espiritual, entre pessoas e comunidade?

Será que o “Tudo vai ficar bem”, inclui a ideia de uma sociedade igual à anterior? 

O devir histórico está em constante mutação e os traumas e revoluções provocam solavancos para a frente. Resta-nos saber em que sentido. A globalização da economia e da comunicação, assegurando um consumo ilimitado,  foi conseguida à custa da destruição de eco-sistemas, como se nenhum recurso fosse inesgotável. A crise pandémica  coloca-nos o noção dos limites e o que começou por ser um assunto sanitário catapulta-nos para uma “encruzilhada civilizacional” (Mendonça, 2020. p. 97)

Para avançarmos no nosso caminho, temos que reaprender a harmonizar transformação e preservação, numa comunidade que  redescobre o seu património relacional. Como diz, o papa Francisco  “o tempo é superior ao espaço”, ou seja, o mundo tem a forma que nós lhe dermos. Assim, “as formas do espaço são relativas e o tempo é fluído, móvel; enquanto o tempo tende a cristalizar,  muitas vezes até a bloquear” (Mendonça. 2020.p.115).  Um tempo de calamidade e paragem é, também, “uma grande oportunidade para redescobrir que a vida não começa e acaba aqui” (Mendonça. 2020. p. 115). Esta constatação torna imperioso que liguemos passado, presente e futuro  e que esperemos poder construir este último com uma energia renovada.

Se, segundo Freud, a nossa experiência traumática nos angustia, em todos os tempos, houve movimentos e pessoas que resistiram  ao trauma. Segundo os psiquiatras, para curar o trauma, será necessário pensar que nada volta ao mesmo, encontrando-se uma nova vivência. Esta poderá ser alicerçada, segundo Tolentino de Mendonça, no amor que vive adormecido. “Esta é uma hora para avivarmos em nós a experiência de sermos amados” (Mendonça. 2020. p. 119). De seguida, há que pronunciar as palavras nunca ditas e de contar a nossa história, exercendo a criatividade em todos os sentidos, na escrita, na música, nas artes plásticas, eu diria mesmo, na economia e sociedade. Por fim, acordemos em nós uma imagem de beleza, como a dos "lírios do campo" de que falava Etty Hillesum, quando encarcerada num campo de concentração. E, beleza das belezas, é tempo de pensarmos em nós próprios, nos tornarmos a própria beleza, ao cuidarmos do mundo, ao cuidarmos do outro.

Assim possa ser!