OPINIÃO
Guerra colonial: um passado que não passa?
O que é que Portugal pretende fazer para enfrentar, de
forma cabal, os persistentes silêncios sobre este passado?
Miguel Cardina
24 de
Fevereiro de 2021, 6:20
A morte de Marcelino da Mata veio
relançar o debate sobre a guerra colonial. Na
verdade, ele nunca deixou de aqui estar. O facto de se manter uma amnésia
induzida sobre este acontecimento histórico faz com que ele regresse
sucessivamente, e de formas nem sempre expectáveis.
A guerra é uma
recordação difícil. Decorreu no quadro de uma ditadura que fez um forte
investimento na legitimação ideológica da sua presença colonial, ao mesmo tempo
que censurava a opinião e prendia opositores. Não se consegue entender a
longevidade da guerra sem se ter isso em mente. Como não se pode perceber a
mudança introduzida na sequência do 25 de abril, marca fundacional do regime
democrático, sem se remeter para a guerra e, mais concretamente, para o papel
que tiveram os militares do MFA – e os movimentos de libertação – na queda do
Estado Novo e no fim do colonialismo.
Só isto bastaria para
tornar problemáticas as palavras do PR e do ministro da Defesa na sequência da
morte de Marcelino da Mata, bem como o teor do voto de
pesar no Parlamento. A natureza burocrática do
texto é um sintoma das suas omissões: ao remeter no abstrato para a “coragem e
bravura individual” do comando, esquece a tradução concreta de certos atos
macabros, que o próprio fez em várias entrevistas, e que configurarão crimes de
guerra. O argumento formalista, que consiste no elenco das condecorações, omite
que foram dadas por um regime cujo derrube, justamente no quadro de uma derrota
política na guerra, é a razão da democracia que temos. Inadvertidamente ou não,
tratou-se de uma reencenação da heroicidade colonialista do Estado Novo,
tingida de silêncios sobre atos que em alguns casos (a Operação
Mar Verde é um exemplo) mereceram
explícita condenação das Nações Unidas.
Não é correto dizer, como
se ouviu por estes dias, que na Guiné se cometeram atrocidades “dos dois
lados”. Essa equivalência não só ilide o contexto colonial em que a guerra se
processa, como não resiste à prova histórica. Não quero transformar este texto
num cortejo de horrores, mas já existe muita informação – inclusive testemunhos
de ex-combatentes – que comprova isso mesmo. Basta querer conhecer. Por outro
lado, e se é verdade que a guerra é a guerra, também não é certo considerar que
todos aqueles que nela participaram se regiam pela mesma bitola ou tiveram os
mesmos comportamentos. Boa parte dos ex-combatentes foram levados para África
para combater numa guerra da qual tentaram sair ilesos. Por causa dela, vários
deles sofrem, ainda hoje, sequelas físicas e psicológicas, por vezes estendidas
às suas famílias, e vão morrendo sem grande atenção pública. Também por isso, a
guerra é uma recordação difícil.
Há dois outros
elementos a sublinhar. Em primeiro lugar, o corte com a ditadura fez-se
instaurando um peculiar pacto de silêncio sobre a guerra, optando-se por não
enfrentar um passado, então recentíssimo, no qual se haviam cometido as
atrocidades típicas de uma guerra em solo colonial, com massacres de
populações, tratamento brutal a prisioneiros e uma efetiva ligação entre o
Exército, as tropas especiais e a PIDE/DGS. Em segundo lugar, esta violência
incomoda porque entra em contradição com a narrativa lusotropicalista que o
Estado Novo promoveu e que permanece fortemente enraizada na memória pública.
Se Portugal não tinha colónias, se a presença em África foi ampla e
amigavelmente acolhida pelas populações locais, como enquadrar a guerra neste
discurso?
Com efeito, a guerra
colonial foi o desfecho tardio de um império já anacrónico. É um dos capítulos
desta vasta história europeia que, encerrada em termos políticos, vai teimando
em manter-se viva como imaginário nacional e nas suas distintas reverberações
sociais, de que o racismo é uma das suas faces mais visíveis. Foi com a
consciência de que seria necessário enfrentar essa página da história que
Macron encomendou um relatório para se fazer um inventário sobre a colonização e a guerra na
Argélia. Na sua sequência, o conceituado
historiador Benjamin Stora entregou, no mês passado, um conjunto de 22
recomendações ao Presidente francês, entre as quais se contam várias
iniciativas memoriais conjuntas entre os dois países: de entre elas, o
esclarecimento de alguns massacres e crimes cometidos; a abertura de arquivos e
o impulso a investigação comum sobre este passado; a renovação dos programas
escolares; a promoção de exposição e colóquios sobre a guerra nas suas
múltiplas faces, incluindo a recusa da guerra, e sobre as independências
africanas.
Como é óbvio, não
advogo nenhuma cópia a papel químico do conjunto destas recomendações. A
questão é outra: o que é que Portugal pretende fazer para enfrentar, de forma
cabal, os persistentes silêncios sobre este passado?
Historiador,
investigador do CES/UC, coordenador do projecto CROME – Memórias
Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos
pós-coloniais, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação
O autor escreve segundo o novo acordo
ortográfico
LER MAIS
https://www.publico.pt/2021/02/24/opiniao/opiniao/guerra-colonial-passado-nao-passa-1951756?fbclid=IwAR0aXCasn24JRZGAlYQkBczpxYGy87B6glK78vJQitnf12-eyHWzxKaQzr0