sábado, 27 de fevereiro de 2021

Reflexão sobre o presente próximo

 






As polémicas ultimamente sentidas na sociedade portuguesa sobre colonialismo e  patriotismo, levaram-me a uma ponderada reflexão, no que se prende à definição de história como “forma de bem pôr os problemas do presente, pela reflexão do passado, tendo em vista a construção do futuro” que, se a memória não me engana, foi pronunciada por José Mattoso.


Também Rioux argumenta que refletir historicamente sobre o presente é fundamental no sentido de ajudar as gerações que crescem a “combater a atemporalidade contemporânea”, avaliar as informações (originais, sonoras e imagens) produzidas pela mídia, aprender a relativizar o “hino à novidade e se desfazer do imediatismo vivido que aprisiona a consciência histórica”:

Neste sentido, recuando no tempo, lembro Pierre Chaunu e o grande salto que foi para o mundo a passagem de um mundo que era considerado em “migalhas” a um mundo “globalizado”, afinal que se deu a conhecer, naturalmente, para a altura, de um ponto de vista europocêntrico.

Não sou especialista no assunto,  no entanto, é evidente a transformação trazida ao mundo pela aventura da expansão marítima, obra de grandes homens, dignos de louvor pela sua coragem de ousar ir além do horizonte. Essa coragem está justamente homenageada em múltiplos monumentos que são marcos da nossa história e assim devem continuar.

Descobrimos mundos, exploramos mundos, que no sentir do tempo se chamava civilizar, a quem deixava, porque no Japão apanhamos fama de “bárbaros” e apenas quiseram os nossos conhecimentos astronómicos e as espingardas.

O tempo flui em mudança!

Hoje encher-nos-ia de horror ver o grande Infante D. Henrique a dividir homens e mulheres, entre os primeiros escravos que lhe foram trazidos do outro lado do mar..

O processo de partilha dos escravos foi relatado por Gomes Eanes de Zurara na sua Crónica da Guiné: «Mas qual seria o coração, mais duro que ser pudesse, que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostos lavados em lágrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dorosamente, esguardando a altura dos céus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem socorro ao Padre da Natureza; outros feriam o rosto com suas palmas, lançando-se estendidos no meio do chão; outros faziam lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra [...]. Mas para ser dó mais acrescentado, sobrevieram aqueles que tinham carregado da partilha e começaram de os apartar uns dos outros, a fim de porem os seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade apartavam os filhos dos padres e as mulheres dos maridos e os irmãos uns dos outros. A amigos nem a parentes se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde a sorte o levava!». O Infante D. Henrique estava «em cima dum poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes», e levou o quinto que lhe tinha sido destacado, correspondente a «46 almas».

Mas como diz a canção, atrás de tempos, tempos vêm.

Praticamos a escravatura, que fez crescer o comércios, uma economia, que no dizer de Vitorino Magalhães Godinho foi de transporte, não nos enriqueceu, porque não desenvolvemos a política de fixação à terra pela agricultura e artesanato. Mais tarde, os Ingleses, Franceses e Holandeses haveriam de aproveitar a brecha do Império mal gerido por portugueses e espanhóis e tomarem eles a rédea do negócio. Todavia, depois de terem dado cartas na conferência de Berlim, em 1885, e terem ficado cada um com o seu quinhão de África, a primeira guerra mundial sangrou de forma significativa estes povos colonizadores de forma a comprometer o seu domínio efetivo, nas regiões colonizadas.

O tempo passa, até que depois da 2ª guerra mundial, a ONU, chama a atenção para os princípios humanitários da descolonização,  da necessidade de dar o seu a seu dono, é evidente, depois dos dominadores terem sido pressionados por múltiplos movimentos independentistas. Portugal foi dos últimos países a conceder a sua independência às colónias E em época de fascismo e nazismo, Portugal tivera o ”seu império”, não precisara de conquistar nada. “Portugal não é um país pequeno”, era assim que as crianças eram educadas na escola e aprendiam até, os rios, as serras as linhas de caminhos de ferro de Portugal continental e das colónias.



De qualquer forma, há sempre a História contada aos olhos de hoje e a história contada aos olhos da época em que aconteceu, para não falarmos da história que instrumentaliza, analisada por Marc Ferro em “Comment on raconte l’histoire aux enfants à travers le monde entier”, título que prefiro ao da tradução portuguesa “Falsificações da História”.

A maior parte dos portugueses venera o fundador de Portugal, D. Afonso Henriques, mas ele lutou contra a mãe que defendia interesses diferentes . Foi por uma boa razão, pensamos nós e não vamos pôr isso em causa. Sem aprofundar, creio que teríamos que questionar toda a História de Portugal e a História do mundo.

Costumo dizer aos meus alunos que a guerra começou quando houve um homem que teve mais alguma coisa do que o outro, o fogo, a agricultura e por aí fora.

É  a natureza humana!

Por este andar, é evidente que não faz sentido destruir estátuas, obras de arte, documentos de um dado período, ou melhor, antes pelo contrário, são marcos dos seres humanos que somos.

Estudemos os mitos gregos e vejamos  como as histórias mitológicas são fantásticas, amalgamando, no mesmo ser, o bem e o mal, imagem e semelhança do deus Zeus.

A Guerra colonial?

Os portugueses à semelhança, de outros povos queriam ter um império ser tão grandes quanto os inglese e franceses, por que não? Os outros arranjaram forma de colonizar de forma mais camuflada, os Portugueses não o fizeram. Todos. obrigaram à mudança de costumes, dominaram, é verdade.

Estourou a guerra nas colónias e Portugal não estava preparado. Em plena guerra fria, lá havia o confronto entre soviéticos, maoístas, cubanos, escandinavos e americanos.

Cá o povo português não sabia nada disso, mas se pudesse ter um padrinho que o livrasse da guerra, por ter um pé chato, ou por ser o único sustento da família sempre era melhor!

Os demais mancebos tinham que ir. Havia quem dissesse que era para ser homens e eles lá iam, as senhoras gentis do Movimento Nacional Feminino arranjavam-lhes cigarros e uma madrinha de guerra, para dar ânimo , com a qual, às vezes, até namoravam e casavam, e a malta lá ia, coração apertado, alguns convictos de que iam defendem a grandeza de Portugal, outros porque assim tinha que ser –“ lutar ou morrer, naquele inferno”, como diz a canção dos Delfins.

Houve quem fugisse a salto, com algum dinheiro ou sem ele, fosse tentar a sorte noutro local, como a França.

Outros  lá iam e destilavam a sua revolta em  canções como as que estão compilados no álbum “Cancões do Niassa”, canções que falam da vida dos soldados, da saudade da terra, ou criticam de forma dissimulada ou direta, a própria guerra. Outros ainda desertavam.

No entanto, havia quem lutasse  e cantasse convictamente: “Angola é nossa!”

A verdade é que, naquela altura, ceder ou seja negociar, estava fora de causa.

Centrando-nos um pouco na  Guiné, quando lá se inicia a guerra, Portugal tem apenas a supremacia dos aviões que eram fornecidos pelos Estados Unidos.  A preparação dos militares era deficiente, não adaptada ao terreno e os independentistas conheciam bem a região.




Guerrilha feia, morte de civis, velhos e crianças existiram dos dois lados e em toda a parte. Ações de comandos (com preparação especial), tipo Rambo, como as que integrava  Marcelino da Mata, a quem prefiro chamar campeão  de ações bélicas a herói, existiam em ambos os lados. Ações ilegais, condenadas pela ONU, como a operação “Mar Verde”, também.

O PAICG, com o apoio do Senegal, ainda tentou negociar, quando, Salazar dá lugar a Marcelo Caetano e existe uma operação de charme à qual se chamou Primavera Marcelista. Talvez, Américo Tomás, os ministros de Salazar tivessem mais força do que o verdadeiro sentir do novo presidente do Conselho designado. A verdade, é que as colónias passam a províncias, é designado, para Governador da Guiné, o General Spínola que insiste na política de cativação da população, através de cuidados de educação e saúde, e tenta mesmo o plano negocial, chegando a escrever “Portugal e o Futuro”, obra na qual defende uma solução diplomática para a Guiné (cuja guerra estava perdida). O pior é que existiam outras colónias e dessas, o governo português não queria, mesmo, abrir mão de todo.

Com a perceção de perda  e de crescente oposição ao regime, Spínola dirige-se a 6 de Agosto a Marcelo Caetano: a anunciar que não regressará à Guiné.  Caetano que perde um dos seus melhores cabos-de-guerra, nomeia para  novo comandante da Guiné o general Bettencourt Rodrigues, com a missão: “Resistir até à exaustão de meios”.

Pouco depois, a 24 de Setembro, o  PAIGC proclama unilateralmente a independência, que é  a 2 de Novembro reconhecida pela  Assembleia Geral da ONU.

Dando-se conta do descontentamento reinante  entre os capitães,  o marcelismo ainda opera uma subida considerável do seu vencimento, reúne a 22 de fevereiro, com Spínola e Costa Gomes, convidando-os a tomar o poder, o que é rejeitado.  O próprio Marcelo Caetano pedirá a demissão a Américo Tomás,  algum tempo depois, que não a aceita.

O Movimento dos  Capitães descontentes com as condições em que combatiam e/ou imbuídos do sentimento de uma guerra injustiça, tentaram dois golpes militares, tendo sido o segundo vitorioso.

Na verdade, Spínola e Costa Gomes tomarão, meses depois, o poder, mas ao lado deste movimento.

Este descontentamento com a guerra colonial tornou urgente a necessidade da Revolução do 25 de abril.

Todavia, à semelhança do que acontecerá, noutras províncias, após o 25 de abril, o PAIGC provoca grande instabilidade em Bissau, criando um clima de insegurança  entre os portugueses militares e civis lá residentes.

Entretanto, Marcelino da Mata que foi convencido a vir  para Portugal,  acabou na época mais aguerrida da revolução,  preso e torturado, no Ralis, numa época de excessos revolucionários, considerava, tal como Spínola: “devia ter havido um período de autodeterminação de 15 anos, durante o qual se formariam quadros civis e militares em Portugal, dentro de uma federação de países. Depois poder-se-ia caminhar para a independência, mas no quadro de uma comunidade semelhante à que o Reino Unido mantém com as suas ex-colónias”. ( Jorge Alves: 2019)

No entanto, a sua natureza era de guerrilheiro, por sido fará, ainda um serviço de formação de tropas, veja-se lá as voltas que a vida dá, ao serviço do MPLA, em Angola, mas posto em causa pelos soviéticos, acaba por regressar a Portugal.

Muito complicada a história em geral e então a História recente?

 

 

 

Saldo do guerra:

 





10 mil mortos, 35 mil feridos, 25 mil deficientes, e 200 mil vítimas de stress de guerra.

Tinham chegado, portanto, tinham tido muito mais sorte do que quem tinha ficado amalgamado a uma árvore por força do Napalm,  virado tripas por força das minas, ou morrido, depois de um longo sofrimento, no hospital.

Um monumento a estes homens que não recusaram ir à guerra? A natureza humana é muito variada. Ir, “lutar ou morrer”, como repete a canção dos Delfins, voltar, quando havia sempre a possibilidade, “ o soldadinho não volta do outro lado do mar! Para mim é justo, um monumento de dor, de agradecimento a quem sacrificou a sua juventude numa luta que muitos não compreendiam a razão, mas,  mais do que isso, tratar as suas dores, com compreensão e tolerância e seguir em frente num movimento de fraterna solidariedade entre todos os povos, com destaque para os PALOP.

 

Fontes:

Afonso Aniceto, Gomes, Matos, Carlos ( 2001) Guerra Colonial, Editorial Notícias, Lisboa

Antunes, José Freire, A guerra de África, 1961-1974, 2vols ( 1995), Círculo de Leitores

Cardina, Miguel, (24de fevereiro de 2001) Guerra colonial: um passado que não passa?, Publico.

Jorge, Alves, (2019) Marcelino da Mata, inédito

Marc Ferro em Comment on raconte l’histoire aux enfants à travers le monde entier, ( 1981), Paris, Payot

Melo, João, Os anos da Guerra- 1961-1975. 2 vols. (1988) D. Quichote

Rioux, J.P. (1999). Pode-se fazer uma história do presente? Em A. Chauveau, A. & P. Tétart (Orgs.). Questões para a história do presente. (I.S. Cohen, Trad.). Bauru, SP: EDUSC.


Vieira, Joaquim, Portugal no século XX – Crónica em imagens (1960-1970), Círculo de Leiitores, 2000

Vieira, Joaquim, Portugal no século XX – Crónica em imagens (1970-1980), Círculo de Leiitores, 2000

Debates televisivos entre Fernando Rosas, Pacheco Pereira e outros. (2021)