Reflexão a propósito do artigo “A História que se aprende e a História que se ensina. …” de José António Marques Moreira
Partir do princípio de que a nossa própria biografia enquanto professores é uma parte importante da História do ensino em Portugal, bem como, a consideração de que “toda a experiência profissional tem uma “razão”, um sentido, uma história, um processo genético, cuja compreensão pelo próprio é decisiva para reconhecer o processo de produção de necessidades de formação” (Correia, José Alberto, org., Formação de Professores, da racionalidade instrumental à acção comunicacional”, Cadernos Correio Pedagógico, Ed. Asa, 1999, p. 64.) levou-me a uma viagem retrospectiva sobre a minha prática docente.
Nesta linha de ideias assumo recuar quase uma trintena de anos atrás e reflectir criticamente sobre a minha entrada no ensino recém licenciada em História.
No início da década de 80 com o fim do curso em vista comecei a preocupar-me com as saídas profissionais. Cursos havia que tinham estágio integrado. A esmagadora maioria dos estudantes de História iam dar aulas, porque não termos, também, estágio no final do curso? Organizamos uma comissão e fomos discutir o assunto com o senhor Reitor da altura. Foi-nos respondido que a FLUP não estava vocacionada para o ensino. Não? Andámos todo o tempo enganadas! Então que vamos fazer no final do curso?
Diploma na mão, prenda de final de curso, umas boas férias de recuperação, lá começei a tentar colocação: Tribunal, Banco (era onde a família tinha influência) se nos sai na rifa estiolamos; Biblioteca, lá tentei, sempre tive uma relação empática com os livros, mas e ensinar? O meu sonho era contribuir para a formação dos jovens e na altura não estava a ver como é que arquivar livros poderia contribuir para isso. Nos finais de Outubro, quando fui ver os resultados das colocações lá apareceu o meu nome, dos poucos do curso, com colocação em História, (havia quem tivesse concorrido a Geografia e ficasse colocado) um horário de 9 horas e que incluía Português ( 5º ano - Curso Geral).”Vamos já à escola!”- sugeriram-me. Não, tenho que me preparar para isso. Amanhã!
Efectivamente, na passagem do estatuto de aluno a professor todo um conjunto de crenças são alteradas
Alguns estudos provam que o ano de estágio é um ano de alteração de crenças. Estas modificam-se e configuram-se em contacto com a realidade da escola, do trabalho com o orientador e com os colegas com experiência.(Pacheco, José Augusto, O pensamento e a Acção do professor, Porto Editora, 1995, p.110). Os professores principiantes, sem profissionalização moldam-se em contacto com a realidade
Estávamos longe de equacionar que “ (a) segurança, (o) prestígio; (a) confiança e, sobretudo, (os) laços recíprocos de estima e afecto (envolvidos na grande parte das escolhas pela profissão docente) exigem uma dura conquista (…); necessitamos de aventureiros dispostos a pôr em causa a sua aposta todas as manhãs” (Mandra, 1984:218 in Lopes, Amélia, Kal-estar na docência – Visões, razões e soluções, CRIAPASA, 2001, p.13)
Quando cheguei à Escola Secundária que me tinha cabido, depois das necessárias apresentações burocráticas no Conselho Directivo e Secretaria, fui apresentada ao Delegado e sub-Delegada de História. “Sê bem vinda, rapariga!” – saudou ele. Agradou-me o seu ar bonacheirão e receptivo. Havía de confirmar as primeiras impressões.
-“Qualquer coisa procuras-me, ou à Emília!”- acrescentou.
A Drª Emília tinha estado num curso sobre "Taxonomia de Bloom" e encarregou-me logo de uma tarefa: -“Como és a mais nova, (haviam de me chamar mascote) olha, lê estas fotocópias e na reunião de grupo apresentas a todos o seu conteúdo”.
Fiquei perplexa! Programação por objectivos?
Na Faculdade sem vocação para o ensino, estudámos temáticas de sequência temporal, a nível institucional e político até 1917 e isto porque optei por História Contemporânea, como o novo curriculum previa. Trabalhámos, várias vezes, em trabalho independente em grupo ou individualmente. Creio que nunca nos falaram em metodologias deste trabalho, mas íamos aprendendo uns com os outros e fazendo. Aliás, a grande lição que a Faculdade nos deu foi a lição da vida. Sem dúvida nenhuma, aprendemos mais fora das aulas do que nas aulas. Relações interpessoais; amizade; amor; solidariedade; tolerância; espírito crítico; capacidade de resolução de problemas; capacidade de comunicar com adaptação ao público alvo; cidadania e intervenção social, fomos incorporando na nossa estrutura mental através do grupo que concorria à Associação de Estudantes, à Assembleia de Representantes ou ao Conselho Pedagógico.
Todavia, agora, a leccionar História como iría estruturar o meu ensino? Ninguém me falara em aprendizagem!
Havia que trabalhar os conteúdos e transmiti-los de forma dialogante, fazer alguns feed-backs para apreciar a retenção dos conteúdos por parte dos alunos e avaliar de forma formativa (estilo revisões) e sumativa.
E os objectivos? Esses só são para apresentar na reunião de grupo.
Mais uma vez a vida me ajudou.
Ora bem, o ensino é assim mesmo. O que quero atingir com ele? Que finalidade ? Que metas? Que comportamentos quero fomentar nos alunos? O pior é que nem todos os alunos são iguais, como vou ensinar a essa amálgama diferenciada?
Alto lá, para já tenho é que preparar os conteúdos e as fichas de avaliação, o resto depois se vê.
O Delegado de História, um dia, trouxe umas capas de umas revistas que mandou encadernar e informou. “ Vou pôr no material do grupo estas capas, são interessantes para motivação”. Motivação ? Nunca ouvira falar.
Entretanto, um colega foi destacado para outra escola para orientar estágio e o Conselho Directivo ofereceu-me o horário dele. Os dois horários sobrepostos extravasavam o permitido. “Largas as turmas que quiseres e pomos o resto a concurso” – informara o colega do Directivo.
“Largo o Português” - pensei logo - eu até gosto da matéria mas é à noite!
Os alunos de Português do Curso Geral, todos mais velhos do que eu, um até podia ser meu pai, é que não pensaram da mesma forma e pressionaram-me para que ficasse. É que sem saber, através de um ensino monolítico eu dava os Lusíadas e Gil Vicente de forma transdisciplinar – conjugando a Literatura e a História e a sintaxe sempre ficava um bocadinho para trás.
Entre as novas turmas, havia uma de 9º, terrível. A Directora de Turma informou-me, logo: “Não vais longe, eles são uns autênticos diabos! Com esses pulsos estás feita! Não podes abrir os dentes!”
Ora, ganhei um novo problema – a disciplina. Como não abrir os dentes? Sou bem disposta! Como é que vou mudar?
O primeiro dia nessa turma foi verdadeiramente o meu primeiro dia de aulas. Eram 25 rapazes de Mecânica predispostos para a brincadeira. Na primeira aula, pediram-me para ir com eles a um “passeio” que tinham organizado e nenhum professor se prontificava a acompanhá-los. “Está bem, onde é?”- anuí apreensiva e com pena deles. Chegaram a Coimbra, compraram-me um boneco das Caldas com ar provocador. “Que giro, obrigada, outro para a minha colecção!”- agradeci, fazendo um gesto decidido! Estavam conquistados! Convidavam-me para tudo. Afinal a minha idade não era muito diferente da de alguns deles! A tudo declinava, com uma desculpa, agradecida. Um respeito mútuo gerou-se entre nós, de tal forma que se algum iniciava uma brincadeira dentro da aula de História, logo alguém o censurava: “com esta professora não!”
Sem saber ganhei a batalha, por obra do acaso consegui devolver àqueles rapazes a auto-estima e fomentar uma relação empática e autêntica.
Inconscientemente, configurava a crença, de que a relação professor - aluno, “deve ser empática, de amizade, salvaguardando, no entanto, que deve pautar-se por uma certa hierarquia, como a que existe entre mãe e filho”.
Acreditava, assim, que perante relações muito próximas, sem gestão da distância, é frequente os alunos abusarem e ser difícil conseguir uma relação empática mas de autoridade.
Na mesma escola dois colegas faziam a profissionalização em serviço. Uma, com vários anos de leccionação, costumava confidenciar o seu nervosismo aquando das aulas assistidas. “Nos teus furos podias ir assistir às minhas aulas e dizeres o que não achares bem! É para me ir habituando!” – pedia-me ela. “ Eu? Está bem, não sei se serve de alguma coisa, mas para te habituares à presença de outras pessoas, pelo menos, deve servir!
Foi então que me dei conta do que estava em jogo numa aula. Afinal não eram só os conteúdos e os testes! Huf!
Efectivamente, aprendi que a experiência reflectida é fundamental para a estruturação de crenças que marcam toda a vida profissional.
Entretanto sindicalizei-me! O delegado sindical era simpático e interventivo. O Sindicato dos Professores dinamizava múltiplas acções de formação. Lembro-me das voltadas para a psicologia dos adolescentes, tão úteis à compreensão de como os nossos alunos aprendem. O ensino passou a andar ligado à aprendizagem!
Comecei a questionar-me – dar a aula como?
Não dás aulas, vendes – rectificava o colega delegado sindical. “Dou, dou, achas que se vendesse era por este preço”?- brincava eu.
Antes de mais, reproduzi os modelos que eram tidos como positivos na minha experiência anterior: - a aula dialogante com abordagem positiva; alguma teatralização como a daquela professora de Português que nos convidara a fazer o julgamento de Frei Luís de Sousa; a investigação, sobretudo no ensino secundário. Sobretudo, porquê? Porque foi assim que fizeram comigo. Há é que não repetir aquelas aulas de História monótonas que só trabalhavam a nossa memória e motivavam o tédio do qual nos evadíamos mandando piadas à colega do lado. Devido a isso, eu que gostavas tanto de História, cheguei mesmo a pôr a hipótese de escolher outro curso só para fugir àquele diz-se diz-se.
O debate era também muito usado. Porquê? Talvez porque o programa de História, sobretudo o do 9º ano, contemplasse muitas rubricas ideológicas e havia que respeitar o confronto de ideias. Para fomentar a tolerância, a abertura a pontos de vista diferentes? Se calhar, mas estava tudo tão sincrético.
No entanto, o que sentía mais era a minha falta de domínio de alguns conteúdos, devido à reestruturação do curriculum do curso de História, e que me levou a frequentar algumas cadeiras extra-curso: História da Arte Contemporânea; História Institucional e Política Medieval; História Cultural e das Mentalidades Medieval.
Então, tinha por hábito fazer o meu plano de aula copiado do usado pelos colegas da profissionalização em serviço. Considerava esta acção importante, porque me ajudava a rever por escrito os conteúdos a leccionar. Na verdade, o plano considerado por muitos como um espartilho, (sentíamos bem na pele a sua dependência) constituía, também, um mal necessário, já que vestia o papel de refúgio e dava segurança a quem tinha pouca experiência pedagógica.
Mesmo assim, dada a falta de suporte do já estudado para alguns conteúdos, a pequena experiência determinava preocupações relativas à conceptualização dos conteúdos e sua relacionação com conteúdos anteriores ou posteriores, daí ocorrer, por vezes o medo das perguntas sobre a matéria a dar no futuro. Este factor tentava ser colmatado com a preparação das aulas por grandes unidades com a fuga à resposta através do subterfúgio “pergunta interessante, pesquise em casa que no próximo dia debatemos o assunto”
A visita de estudo foi outro acto enriquecedor. Aonde vamos? Coimbra e Conímbriga. Com que objectivos? Ora cá estavam “eles” outra vez. O colega delegado disse logo que a “mascote” iria ter a honra de planear a visita. Os colegas ajudariam no que fosse preciso! Quando tivesse o material informativo, reuniríamos para a redacção final do roteiro. Assim se fez, a visita também! O relatório elaborado pelos alunos revelou que eles atingiram os objectivos propostos e entre eles o estreitamento das relações sócio - afectivas entre professores e alunos, aluno - aluno e professor - professor.
Estava lançada! E se o relacionamento inter-pessoal e a continuação do trabalho aconselhava a minha permanência na escola, a verdade é que no ano seguinte fui colocada em 1ª fase (muita sorte!) em Castro Verde, no Alentejo. Aí consolidei a minha autonomia, experienciei metodologias que tinha lido em bibliografias de tempos livres, usei como recursos além do livro, outros livros, documentos iconográficos, a canção e a visita de estudo com carácter muito mais sistemático. Nesta pequena região, quase condenada à desertificação pela emigração, as nossas alunas (sobretudo) endinheiradas pelas remessas dos pais e que possuíam camiões e carrinhas punham gentilmente esses veículos ao serviço da escola. Assim, explorámos em conjunto os castros e outras fontes da história local para a qual sempre tive propensão, desde que o saudoso professor Carlos Alberto Ferreira de Almeida me comunicou esse fascínio. E então, a canção acontecia, num Alentejo que tinha como principal distracção “cantar à Alentejana”, como motivação (já tínha aprendido a sua função) no desenvolvimento da aula ou conclusão. O importante era motivar os alunos para a História e isso era fácil naquele meio seco e quente ("Se fores a Castro Verde, as fontes cheiram a rosas e a água não mata a sede"), era só preciso sair das quatro paredes da sala de aula, encontrar uma árvore ou uma barragem de água e sentados debaixo dela, alunos em redor da professora, qual Sócrates e os peripatéticos, dialogar de forma a que a compreensão histórica surgisse. Os alunos eram curiosos e participativos. Queriam era preservar-se do calor!
Eu é que tínha que preparar cinco níveis!
Nesse ano, a acção dinamizada pela professora Maria Emília Dinis, em Beja, foi vital para a minha formação, já que a propósito do tema do 12º ano “ A Demografia do Antigo Regime e a Família” me abriu caminhos nunca antes insondados a nível de metodologias, estratégias e recursos.
O terceiro ano deste estágio pela acção ocorreu no 2º ciclo, na Escola Preparatória de Lordelo, Paredes, onde fui colocada, logo a seguir. Quando lá cheguei, o Presidente do Conselho Directivo, Joaquim Azevedo, com o qual tinha convivido nas minhas andanças associativas, sugeriu: - “Ficas com o Projecto dos CTL e com a organização do Museu do Móvel, além das turmas de História!”. Nem pestanejei, sempre apreciei desafios! Na prática, tive que fazer pesquisa para a organização do Museu do Móvel no Museu Soares dos Reis e preparar aulas teóricas de História do Mobiliário com recursos atraentes já que o público alvo eram crianças interessadas em fazer e não saber. Nem sempre soube motivá-los, mas o facto de alguns alunos problemáticos, passados vários anos, ainda me escreverem, diz-me que não foi de todo neutra a minha passagem por essa escola. E depois, como afirma Stenhouse (1987) “o aperfeiçoamento da prática a partir do êxito é muito limitado. Aprende-se muito mais com os erros”.
No entanto, enriquecedor foi o clima vivido na escola – fomento de trabalho em equipa por parte do Conselho Directivo, atribuição de coerência aos conteúdos através da planificação conjunta e articulada dos conteúdos das diversas disciplinas, o seu registo num placard para isso criado, resistência do corpo estabelecido, por outro lado…
Também aqui, se sobrestimava os conteúdos e a sua articulação transdisciplinar. E, a sua adequação ao meio falhou porque não se teve em linha de conta que os alunos não queriam ter aulas teóricas de madeiras e as práticas serviam para eles exercitarem apenas o seu saber fazer.
Todavia, de novo, o núcleo de estágio em serviço que funcionava nesta escola foi um importante pólo dinamizador, ao qual me juntei por vocação de animadora e de aprendiz. Tive, assim, mais uma oportunidade de colmatar as falhas que sentía a nível das Ciências da Educação.
Fiquei partidária de metodologias não directivas depois de ler “ Summerhill” e “ Liberdade sem medo”, hoje denominadas depreciativamente de” eduquês”. Compreendí que o que se tentava implementar naquela instituição era um pouco do mesmo e que falhava.
Como funcionar de forma não directiva e estimulante para os alunos?
Nas turmas do ensino básico, com o acesso à escolaridade de toda uma população com dificuldades de índole diversa, há potencialmente mais propensão à indisciplina por parte daqueles que não encontram na escolarização um meio de realização das suas aspirações, por desconhecerem grande parte dos códigos utilizados ou se sentirem perturbados por não encontrarem nenhum sentido nas aprendizagens.
Como lidar com a frustração quando a não directividade falha?
Aliás a própria escola e os colegas exerc(em)eram pressão para que sejam/fossem adoptadas atitudes de controlo/directividade. O professor é assim pressionado a mudar crenças em troco da segurança de que carece.
Depois destes três anos de leccionação, do "estágio em acção", creio que me senti profissional sem profissionalização, já que entretanto, era ultrapassada por outros profissionais com profissionalização pela Universidade do Minho, à qual eu estava impedida de aceder, como supranumerária, porque detinha já uma Licenciatura.
Faltou-me aquele ombro amigo a quem se recorre quando alguma coisa falha "para me ajudar a identificar e antecipar fontes de stress possíveis e [fornecer], sobretudo, modelos positivos de professor, passíveis de relativização (…), de modo a evitar estereótipos idealistas.”
Muitas vezes, vivi a frustração a partir de aprendizagens não conseguidas pelos alunos. Nos primeiros anos, dizem, o mal –estar advindo da não consecução de aprendizagens por parte dos alunos é muito mais traumático, porque acarreta atribuições pessoais negativas. O carácter ambíguo e incerto do papel desempenhado pelo professor será responsável pelas reacções do stress no ensino, já que os problemas de desempenho são vistos como incompetências pessoais. Hoje passados tantos anos, eu creio que este problema é constante e tem-se agudizado nos últimos anos com a abertura da escolaridade e a desvalorização da função docente.
Voltando à minha história, quando por fim, fui admitida à profissionalização em exercício pela Universidade Aberta, já me sentia autenticamente professora. É evidente, que modifiquei alguma da minha prática docente, como acontece quando se frequenta outro qualquer curso. O modelo de formação seguido centrou-se nas aquisições – a psicologia da criança e do adolescente, o sistema educativo, os saberes fazer. O ser de novo estudantes, abriu-me outras perspectivas da aprendizagem já esquecidas. No entanto, transformou-me, sobretudo, de professora “provisória” em “definitiva”. Estava acabada!