3/9/2014,
Em sociedades
escolarizadas, as salas de aula constituem núcleos-chave de regulação da vida
social quotidiana, infelizmente tomadas de assalto há décadas por diletantismos
irresponsáveis.
Tópicos
· EDUCAÇÃO
· ESTATUTO DO ALUNO
· PROFESSORES
O tempo transformou a
indisciplina no mais grave obstáculo à qualidade do ensino. O fenómeno é
alimentado por sete pecados mortais ou, noutra terminologia, sete falácias
capitais.
Primeira falácia: “Os
professores não têm autoridade”. Apoiado no ensaio de Miguel Morgado,
“Autoridade” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2010), sublinho que a forte
tendência para a ineficácia disciplinar nas salas de aula não tem tanto a ver
com a autoridade dos professores. Esta funda-se no conhecimento, atributo
raramente central em episódios de indisciplina. No âmago desta está um outro
núcleo-chave: o do poder dos professores. Esse poder resulta dos instrumentos
de que a autoridade legítima deve dispor para se tornar direta, simples,
imediata, pragmática, efetiva. O valor da palavra é o instrumento que confere,
por excelência, conteúdo concreto ao poder hierárquico dos professores sobre os
alunos sem o qual deixa de fazer sentido o dever moral, deontológico e cívico
de regular atitudes e comportamentos. Quer dizer que a autoridade (que os
professores possuem) e o poder (que não lhes é reconhecido) não são
confundíveis. Para se enfrentar o fenómeno da indisciplina, o foco tem de se
deslocar da questão inócua da autoridade para a questão substantiva do poder
dos professores nas salas de aula.
Segunda falácia: “A
indisciplina é intersubjetiva”. É fortíssima a tentação de conceber a
indisciplina como um fenómeno que se joga nas idiossincrasias de cada contexto,
caso a caso entre um dado docente e os respetivos alunos. Contudo, as
evidências há décadas que demonstram que o fenómeno é sistémico, não
confundível com um agregado de ocorrências pontuais.
Terceira falácia: “A
indisciplina nas escolas é própria das sociedades atuais”. Gente douta e gente
comum fingem acreditar que o sentido da vida coletiva é imposto por um destino
inelutável. A verdade é que nenhuma sociedade é abúlica. As características
dominantes dos sistemas que as regulam, entre eles o ensino, resultam de
escolhas coletivas entre inúmeras possibilidades que uns poucos influentes
fazem num dado sentido e não noutros, e os demais toleram. Tais escolhas têm
implicações diretas nas relações de poder dentro de uma sala de aula e foi por
elas que, nas últimas décadas, foi pesando bem mais o prato da balança do lado
dos alunos-crianças-adolescentes-jovens e bem menos o prato da balança do lado
dos professores-adultos, transformação coincidente no tempo com o agravamento
da indisciplina. Como também não existem perversões nas hierarquias
institucionais caídas dos céus, sobretudo quando elas nem sempre foram
relevantes num sistema que atravessa gerações, o que vimos assistindo nas salas
de aula tem, por isso, propósitos e agentes responsáveis. É por essas razões
que o essencial na minimização da indisciplina não se joga na intimidade da
sala de aula, antes entre quem as tutela no quotidiano, os professores de
facto, e quem de fora das escolas tutela o sistema de ensino nas decisivas
dimensões política, legislativa, académica, administrativa e quem influencia a
opinião pública. Nesta ampla configuração de poderes e vontades, aos
professores de sala de aula sobra o papel de elo mais fraco na longa cadeia
tutelar.
Quarta falácia: “Os
professores têm poder excessivo”. A relação dos professores com o poder obedece
a lógicas inversas às da indisciplina. Quanto mais distantes da sala de aula,
tanto maior o poder dos professores até ao topo da elite sindical. Contudo, a
falácia não se desfaz se nos limitarmos ao universo dos professores. O que está
em causa são disputas pelo controlo da capacidade de influência sobre crianças,
adolescentes e jovens de hoje, adultos de amanhã. Tal capital social sempre foi
extremamente valioso. Foi esse poder que os partidos políticos e respetivas
derivas sindicais, os académicos cientistas da educação, os autodenominados
representantes dos pais, os notáveis do regime, entre outros, uns por ação e
outros por omissão, há décadas retiraram ou toleraram que se retirasse aos
docentes do ensino básico e secundário a pretexto da invasão democratizante das
salas de aula, movimento que redundou num estulto igualitarismo institucional
gerador de indisciplina.
Quinta falácia: “A escola
perdeu importância social”. A massificação efetiva do acesso ao ensino e o
alargamento do tempo médio de permanência no sistema (entra-se mais cedo e
sai-se mais tarde) resultaram na perda da influência de outras instituições que
permitem aos adultos tutelar os mais novos: famílias, igrejas, comunidades de
residência, organizações cívicas, partidos políticos, serviço militar, entre
outros. Tal reconfiguração foi transformando as salas de aula em espaços cada
vez mais na mira das mais agressivas leis do mercado do poder. Qualquer um,
indivíduo ou instituição, passou a julgar-se no direito de sobre elas opinar ou
nelas intervir, pressão social que coloca constantemente em causa a autonomia
das escolas, fragilizando a sua dignidade e identidade institucional. É
sintomático que quanto mais o futuro das sociedades foi ficando umbilicalmente
dependente do trabalho de todos os dias nas salas de aula, tanto mais se foi
propalando a tese de que as escolas perdiam influência social e tudo se tem
feito para tornar esse desejo em evidência, ainda que colida com a realidade
factual. A tese perdura porque legitima a conversão do ensino num peão de
disputas pelo poder.
Sexta falácia: “Crianças,
adolescentes e jovens são responsáveis pela erosão do poder dos
professores”.Confunde-se a consequência com a causa. Quando as pressões dos
adultos de fora para dentro das salas de aula mudarem de sentido, as atitudes e
comportamentos dos estudantes também mudarão. Em democracias e sociedades
civilizadas, o respeito pelos poderes legitimamente instituídos constitui um
dever moral e cívico alimentado nas interações quotidianas. Quanto mais
predominante for essa atitude, tanto maiores as possibilidades de
redistribuição efetiva do inescapável poder social de uns sobre outros quase
sempre hiperconcentrado nos “grandes”. A valorização da atitude referida
reforça as predisposições sociais para que se confira forte legitimidade aos
“pequenos” poderes, fundada na autonomia e autoridade profissional dos seus
agentes. O contrário é um vazio social de poder que desemboca invariavelmente
em maus resultados. Nas nossas sociedades, professores de sala de aula e
polícias de rua são fundamentais na regulação da vida quotidiana. As utopias
revolucionárias em voga – variante das mais incisivas da anacrónica pedofilia
na luta pelo poder político, cujo papel se foi tornando tanto mais saliente no
ensino quanto mais perderam espaço noutros domínios da vida social – fomentam o
oposto da democratização da presença e respeito por figuras de poder em
contextos institucionais e sociais onde a função e prestígio dos “pequenos”
poderes se revelam cruciais. Fragilidades a este nível tornam as sociedades bem
menos competentes na garantia da dignidade, segurança, promoção social e
sentido de responsabilidade cívica dos indivíduos, em particular dos mais
vulneráveis.
Sétima falácia: “Os
estatutos do aluno servem para combater a indisciplina”. Para simular um
pretenso combate continuado à indisciplina gerou-se uma interminável paz podre
sustentada na credulidade na via escrita e burocrática enquanto estratégia de
regulação de atitudes e comportamentos em sala de aula, no caso português convertida
na relevância política, social e institucional atribuída aos estatutos do
aluno. Os estatutos do aluno desceram à terra para ratificar em forma de lei
escrita a negação do poder da palavra aos professores. Tais documentos legais
nunca foram parte da solução, antes peça central na perpetuação da
indisciplina. A minimização efetiva do fenómeno não necessita de se escudar em
estatutos do aluno, regulamentos internos das escolas ou burocracias
adjacentes. Necessita acima de tudo de se focar num pressuposto bem mais
decisivo: renovar o contrato social profundamente desgastado entre as
sociedades e as escolas. Sociedades que sobrevalorizam estatutos do aluno
porque não confiam diretamente nos seus professores na sala de aula têm o que
merecem. Professores que não pugnam por exames nacionais e por um sistema de
classificação de resultados escolares simples, estável e transversal do
primeiro ciclo do básico ao ensino superior para que as suas lógicas e
consequências sejam de fácil e transparente interpretação pelo senso comum, não
percebem o quanto eles mesmos têm colocado em causa referentes fundadores da
confiança que as sociedades depositam nos seus profissionais de ensino.
Em sociedades
escolarizadas, as salas de aula constituem núcleos-chave de regulação da vida
social quotidiana, infelizmente tomadas de assalto há décadas por diletantismos
irresponsáveis.
http://observador.pt/opiniao/indisciplina-nas-escolas-os-sete-pecados-mortais/