Santana
Castilho
No
meu último artigo afirmei que era uma fraude a circunstância de a Fundação para
a Ciência e a Tecnologia (FCT) ter imposto um determinado resultado em sede do
contrato para avaliar os centros de investigação. Fiquei surpreendido por ter
sido interpelado por vários leitores investigadores, certamente não
pertencentes aos 50% dos centros predestinados à
exclusão, ainda antes de a avaliação ter lugar. Esses leitores usaram,
curiosamente, os mesmos argumentos, a saber:
-
Dizendo o que disse, eu estaria a admitir que os revisores internacionais que
participaram no processo aceitaram ser coniventes com uma fraude,
comprometendo, assim, a sua idoneidade científica.
- A
obrigatoriedade contratual de 10% dos centros serem classificados como
«outstanding», 15% «excellent», 20% «very good», 35% «good» e 20%
«uncompetitive» era uma simples distribuição estatística determinada pela
escassez de recursos.
Ora
eu não sei se os revisores internacionais aceitaram ser coniventes com uma
fraude. Sei que a FCT, pela voz do seu presidente, negou publicamente terem
sido definidas quotas prévias e, afinal, a imposição estava no contrato. Sei
que qualquer mecanismo de quotas, por carência de recursos, é uma medida
administrativa e política, sempre posterior a um processo de avaliação sério. A
distribuição estatística só pode ser feita, em qualquer contexto avaliativo,
depois de concluído o processo. E dá o que der! Não é preordenada. Imagine-se
que os alunos dos venerandos revisores internacionais respondiam a 100% à
totalidade dos itens de um exame, cotado para 200 pontos. Como lhes aplicariam
a distribuição forçada, de modo a que 10% fossem «outstanding», 15%
«excellent», 20% «very good», 35% «good» e 20% «uncompetitive»?
Sei
que, por isso, algumas unidades avaliadas viram, discricionariamente,
diminuídas as expressões da sua avaliação para que o resultado se encaixasse no
ordenamento prévio. Sei que o contraditório produzido por centros e
investigadores portugueses, que não me merecem menor respeito e credibilidade
que os revisores internacionais, não foi tido em conta, como se esperaria num
processo sério e transparente.
Tanto
quanto sei, a contratada European Science Foundation não tem experiência
relevante nesta matéria que justifique a contratação em análise e estou cansado
de ver confundir o inconfundível, isto é, julgar e invocar que o prestígio
granjeado numa área protege e confere imunidade para actuar noutras. É vasta a
lista de exemplos de fraudes cometidas por cientistas, com que se pode rebater
a crença segundo a qual eles nunca actuam à revelia da ética. Por todos, e são
tantos, recordo aqui o último, não passou ainda um mês, que levou ao suicídio
de um dos maiores cientistas da área, do centro Riken de biologia do
desenvolvimento, a propósito do escândalo sobre a produção de células
estaminais.
Há
hoje um verdadeiro poder oculto, uma autêntica ideologia dominante, que nos
invade a vida: para onde quer que nos viremos, somos interpelados por
instrumentos de avaliação. Mas as práticas avaliativas, desde que enquistadas
em modelos burocráticos e universais, ou são instrumentos de poder e de
controlo social, alegadamente para tornar mais eficiente o funcionamento das
nossas instituições, ou não passam de modismos improdutivos, macaqueados por
uma sociedade que pensa pouco e obedece demasiado.
Na
administração pública e no governo do país há uma casta de fundamentalistas da
aritmética política que, fazendo da estatística guião e da econometria bíblia,
tudo querem reduzir a rankings. Como se o interior das pessoas, os problemas da
educação, da saúde ou da justiça, entre tantos que afectam os humanos, fossem
assim solucionáveis.
Noutros
tempos, os invasores eram combatidos. Na cultura avaliativa que hoje impera,
são muitas vezes os «invadidos» que endeusam o conceito e que facilitam e
solicitam a acção dos «invasores». Neste contexto, as tecnologias modernas de
comunicação e informação assumem particular relevância, pondo todos a observar
todos, numa devassa inimaginável da privacidade de cada um e numa actividade de
controlo social exercido em cadeia. Os teóricos desta moderna avaliação têm uma
propensão monstruosa para tudo gerir com a aplicação de modelos, que reduzem
culturas e contextos díspares à mesma escravatura de resultados.
Entendamo-nos.
Desde sempre, todos os chefes competentes e todos os chefiados honestos
concordaram com a necessidade de avaliar para gerir bem. Mas dificilmente
alguém me convencerá de que é útil aplicar medidas de desempenho
estereotipadas, normalizadas e gerais a tudo o que é diverso. Ou que se pode
tudo medir e tudo indexar a resultados, índices e rankings. É esta cultura de
avaliação tendente a constituir-se como autoridade única, radical, que
paulatinamente vai unificando práticas, vigiando e suscitando veneração, que
contesto. É a relevância que se lhe atribui que repudio. É a passividade da
sociedade face a uma certa versão moderna de fascismo que me preocupa.
In
"Público" de 27.8.14